quinta-feira, 20 de novembro de 2003

01.04 A linguagem dos números – o caso português



Tomemos, como ilustração, os números do INE (Estatísticas de Emprego) relativos ao quarto trimestre de 2002 em Portugal.


Todos os que em Portugal se orientam pelo paradigma marxista, não podem cometer o erro de ignorar um conjunto de “anomalias” que ocorrem no domínio da composição da sociedade actual no nosso país.
Como se pode constatar quando analisamos a população com mais de 15 anos, ou seja, aqueles que de modo geral são os destinatários da acção política:
1. As empresas, o sector capitalista da sociedade, dão emprego assalariado apenas a cerca 3 milhões de pessoas, apenas 34,3 % da população com mais de 15 anos.
2. Desses assalariados só 2.236.800 têm uma situação estável, contrato sem termo, o que corresponde a 25,6 % da população com mais de 15 anos.
3. Estes números pecam provavelmente por excesso já que é comum nas pequenas empresas (em 1999 havia 193.001 empresas com menos de 10 empregados nos Quadros de Pessoal do Ministério do Trabalho e Segurança Social) os sócios proprietários ocuparem funções assalariadas como directores gerais, directores técnicos, etc. Estes situações não correspondem obviamente a casos típicos de trabalhadores assalariados.
4. Por outro lado constata-se que 2.628.600 cidadãos obtêm os seus rendimentos do Estado o que corresponde a 30 % da população com mais de 15 anos.
5. A População Activa corresponde apenas a 61,6 % da população com mais de 15 anos o que resulta em grande medida das ineficiências do sistema escolar e das políticas de reforma antecipada que mascaram formas de desemprego.
Consideramos estes números um claro sintoma da decadência do assalariamento enquanto expressão do modo de produção capitalista.
O assalariamento capitalista é a forma de subordinar a força de trabalho ao ciclo D-M-D' [1] em que o capitalista chega ao fim do ciclo com D>D', ou seja com mais dinheiro no fim do ciclo do que no princípio.
O trabalho na Administração Pública, e em geral o rendimento obtido do Estado, não se enquadra nesta definição pois não tem como objectivo a obtenção de lucro, nem sequer a recuperação do investimento. Na realidade o sector público paga o emprego que cria, no essencial, com verbas que são retiradas aos salários dos trabalhadores por conta de outrem, através do sistema fiscal.
Os trabalhadores por conta de outrem garantem uma parte muito substancial das receitas do Estado que, para além de pagar os salários dos seus funcionários também faz regressar essas verbas às empresas através das aquisições de bens e serviços.
O Estado funciona assim como um dispositivo para, recuperando uma parte substancial dos salários pagos pelo sector privado, assegurar empregos que este não consegue criar e garantir que uma parte dos salários em vez de se converter em poupança volta a entrar no circuito económico.
Numa sociedade em que o assalariamento cresce principalmente na Administração pública ou tem cada vez mais um carácter precário (contratos a prazo, "a recibo verde" e contratos de trabalho temporário) fragiliza-se o "contrato social" tácito em que se baseia o capitalismo.
Vejamos como evoluiu a situação desde 1979 com base em números do INE constantes do Volume II de “A Situação Social em Portugal 1960-1999” e das “Estatísticas de Emprego” do quarto trimestre de 2002:



Quadro 1.2 – Evolução da origem dos rendimentos



(clicar o quadro para ampliar)


Constata-se que:
1. Mesmo considerando só os pensionistas por velhice (há também as pensões por sobrevivência e por doença) temos desde 1996 um número de cidadãos cujos rendimentos têm origem no Estado superior ao número de cidadãos que auferem os seus rendimentos de contratos estáveis de assalariamento em empresas
2. Desde 1983 o número de cidadãos que obtém os seus rendimentos do Estado tem crescido mais rapidamente (37,9 %) do que os número de trabalhadores por conta de outrem em geral (24,7 %), trabalhadores por conta de outrem em empresas (17,9 %) e trabalhadores por conta de outrem em empresas com contratos estáveis (9,2 %). Qualquer pessoa percebe que esta tendência não é sustentável por muito mais tempo.
Para a legitimação da injustiça capitalista foi sempre usado o pretexto de que era o preço a pagar para que os capitalistas assegurassem os meios de subsistência do povo, ora não é isso que está a acontecer.

Tudo isto traduz o desinteresse e a incapacidade da burguesia para, nas actuais circunstâncias tecnológicas e sociais, arregimentar e explorar milhões de trabalhadores disponíveis. E isso põe justamente o sistema em questão.

Paradoxalmente são as organizações sindicais e políticas de esquerda que insistem no assalariamento não apenas como uma obrigação do patronato mas quase como se o assalariamento fosse algo de socialmente positivo.
Não apresentam qualquer perspectivação de resistência nem abordagem de fórmulas alternativas ao assalariamento que assim aparece ainda hoje, para a maior parte dos jovens, como um objectivo de vida.
Neste ponto os sindicatos não estão sozinhos, também a Estratégia Europeia para o Emprego e o Plano Nacional de Emprego, para os quais contribuiu a Presidência da União Europeia desempenhada por Portugal, parecem ignorar a contradição entre a “sociedade do conhecimento” e o trabalho assalariado [6]
E no entanto, já em 1865, dirigindo-se ao Conselho Geral da Primeira Internacional Marx apresentava como objectivo essencial de luta a abolição do sistema de salários (Salário, Preço e Lucro, pp. 80 [7])
Analisemos agora a distribuição dos 3.004.761 trabalhadores assalariados constantes dos Quadros de Pessoal enviados ao Ministério do Trabalho e Segurança Social em 1999 e da “A Administração Pública em Números” de 1999 :



Quadro 1.3 - Distribuição dos assalariados por profissões



(clicar o quadro para ampliar)


Constata-se que:
1. Só 29,3 % dos assalariados em empresas ou na Administração Pública, são operários ou têm uma actividade similar.
2. Cerca de 1.949.587 cidadãos têm profissões em que se procede ao tratamento de informação e não à transformação de materiais. Correspondem já a 64,9 % dos assalariados nas empresas ou na Administração Pública.
Estes números, permitem concluir que, ao contrário das previsões que se faziam no século XIX, existe um número muito elevado de trabalhadores “não-operários" que provavelmente não se sentirão "retratados" na análise marxista ou, pelo menos, na prática dos partidos marxistas.
Estes trabalhadores, a que se deve juntar um número crescente de operários que lidam com equipamentos complexos, funcionam num ambiente onde cada vez conta menos o tempo de trabalho e cada vez conta mais o conhecimento que injectam nas tarefas realizadas.
Por outro lado a concepção tradicional da luta de classes é de certa forma posta em causa por situações como:
1. Cada vez mais trabalhadores assalariados estão perante um patrão que é um representante do Governo eleito e não um empresário privado
2. Segundo a APETT, Associação Portuguesa de Empresas de Trabalho Temporário, 1,5 % da população activa empregado actua no quadro de contratos de trabalho temporário (DN 14 de Abril 2003). Tal significa que um número substancial de trabalhadores trabalha por “aluguer” em empresas com quem não tem nenhum vínculo contratual. As 380 empresas “alugadoras” de mão-de-obra facturam anualmente 500 milhões de euros.
3. Das 234.850 empresas que enviaram Quadros de Pessoal ao Ministério do Trabalho e Segurança Social em 1999, 193.001 têm até 9 empregados. Isto significa que para muitos trabalhadores assalariados são muito limitadas as possibilidades de organização sindical e de reivindicação laboral dada a reduzida dimensão das unidades em que laboram.
Na constatação de todas estas “anomalias” deve assentar a principal motivação para o reajustamento do paradigma marxista e para uma revisão profunda dos pressupostos em que se tem fundamentado a acção sindical e política.
Sem esse reajustamento muito dificilmente será possível ganhar estas vastas camadas de “trabalhadores do conhecimento” para a transformação progressista da sociedade.
A teoria do valor de Marx, e portanto o valor fundamentado no tempo de trabalho, insere-se na definição por Marx do sistema capitalista. Faz todo o sentido que um modo de produção que paga o trabalho na base do tempo considere o tempo como a base do valor.

Não é crível que Marx pretendesse com isso definir uma tese fora da História (se é que tal é próprio de um marxista) mas sim caracterizar o Capitalismo. Os textos dos Grundrisse anteriormente citados mostram que Marx antevia o fim do valor baseado no tempo de trabalho.

Como veremos mais adiante, a nossa tese defende que no modo de produção emergente, o Digitalismo, o valor baseia-se não no tempo de trabalho mas no "conhecimento incorporado" através do trabalho.
Quando afirmamos isto não estamos a contradizer Marx mas sim a fazer uma extensão da sua teoria do valor para um novo contexto.
Vamos mesmo mais longe, estamos a ir ao encontro do que Marx entendia como objectivo maior dos trabalhadores: acabar com o trabalho assalariado.
Sem se superar a teoria do valor baseada no tempo de trabalho é impossível superar o princípio do assalariamento e visualizar a sua substituição por uma relação de produção de novo tipo.

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