quinta-feira, 20 de novembro de 2003

01.02 Reajustar o paradigma marxista

O nosso objectivo é demonstrar a necessidade de reajustar o paradigma marxista e dar contributos nesse sentido.
Partimos do princípio de que o desenvolvimento da tecnologia está a criar condições para a emergência de um novo modo de produção [1] já não baseado no assalariamento, sendo previsível para breve o surgimento de um novo conjunto de relações de produção [1] e depois a sua rápida generalização tal como aconteceu com o assalariamento no século XIX.
Tudo leva a crer que a luta dos que se reclamam progressistas será travada a partir desse novo modo de produção (o Digitalismo) e que os instrumentos teóricos tradicionais terão que ser ajustados para se manterem adequados nessa nova fase.
Se se mantiver a actual esquizofrenia política que, por "fidelidade" ao paradigma marxista, insiste em lutar nos moldes tradicionais contra um adversário (o Capitalismo) que em grande medida já é outro, então as perspectivas são sombrias.
Se tomarmos como válida a hipótese de que, por acção dos impressionantes desenvolvimentos científicos e tecnológicos, nos encontramos em transição do capitalismo para um novo modo de produção, então coloca-se a questão de perceber de que modo isso afecta o paradigma marxista.

Tomamos como orientação as teses defendidas por Thomas Khun acerca de como se criam e substituem os paradigmas (The Structure of Scientific Revolutions, The University of Chicago Press, 1962) e que passamos a citar:

“A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que a natureza de alguma forma violou as expectativas induzidas pelo paradigma que governa a ciência normal. Continua então com uma exploração mais ou menos vasta da área da anomalia. E só se conclui quando a teoria do paradigma for ajustada de modo a que o anómalo passe a ser expectável. Assimilar um novo tipo de factos requer ajustes mais do que incrementais da teoria, e até que tais ajustes se tenham completado – até que o cientista tenha aprendido a ver a natureza de modo diferente – os novos factos não podem de forma alguma ser considerados científicos.(trad. do autor, pp. 52) ”

Propomo-nos portanto identificar os traços da sociedade actual que não foram previstos, e não são explicados, pela teoria marxista. O objectivo, podemos enunciá-lo desde já, é proceder aos ajustamentos da teoria que permitam, assimilando a realidade actual, devolver-lhe a qualidade de instrumento para a acção.

Dada a extensão da obra de Marx é importante concentrar os esforços no seu núcleo. Assim a reavaliação da teoria do valor [1] baseado no tempo de trabalho e as suas implicações na definição e determinação do conceito de mais-valia absorverão o grosso das atenções.

É notável que Marx tenha, já em 1858, intuído muitas das perplexidades actuais como se pode verificar nestes excertos dos Grundrisse (Ed. Penguin Books, 1993):

«Mas à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza real toma-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de trabalho utilizado e mais do poder dos meios que são colocados em movimento durante o tempo de trabalho, cuja “poderosa eficácia” por sua vez não está em proporção ao tempo de trabalho directo gasto na sua produção mas depende principalmente do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia ou da aplicação desta ciência à produção».
....
«A partir do momento em que o trabalho na sua forma directa tenha cessado de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida e portanto o valor de troca deve deixar de ser a medida do valor de uso. ».
(trad. Do autor, Grundrisse, pp. 704/705).

Não é por acaso que este tópico do capítulo “The chapter on Capital” se denomina “Contradição entre o fundamento da produção burguesa (valor como medida) e o seu desenvolvimento. Máquinas, etc.”. Claramente subjacente está o entendimento de que o valor (baseado no tempo de trabalho) acabará por entrar em conflito com o desenvolvimento das forças produtivas, da produtividade pela automatização, inerente ao próprio capitalismo.

Estes excertos, bem como muitas outras teses avançadas neste capítulo dos Grundrisse, foram em geral negligenciados pelos teóricos e pelos movimentos marxistas. Tal deve-se, com toda a probabilidade, ao facto de as teses sobre o esbatimento da importância do valor baseado no tempo de trabalho terem sido associadas ao surgimento da sociedade comunista e portanto a uma época futura em que os objectivos da luta de classe teriam já sido atingidos. Não tendo assim um interesse imediato para a acção, não foram objecto de estudo e nem sequer de atenção.

Se se continuar a acreditar, sem qualquer base teórica ou fundamento, que ao fim do Capitalismo corresponderá necessariamente o advento do Comunismo [3], será quase impossível aceitar ver indícios de que a formação do valor possa ser feita de outro modo, quando essa fase final ainda não foi atingida. Se for admitida a hipótese da passagem a um modo de produção que não sendo já Capitalismo também não seja o Comunismo então estas questões terão de merecer um outro tipo de análise, ou seja, terá de ser considerada a hipótese de o valor deixar de radicar no tempo de trabalho, já durante o Digitalismo.

A teoria marxista do valor tem limitações que, embora se possam considerar normais à luz das condições impostas pelo tempo histórico em que Marx desenvolveu o seu trabalho, não permitem enquadrar um certo número de situações económicas e laborais dos nossos dias.
Regressando a Kuhn, tais situações terão que ser entendidas como “anómalas” no âmbito do paradigma marxista.

Passamos a listar, sem pretensões de que a lista esteja completa, os fenómenos da sociedade actual que não foram contemplados na teorização marxista:


1. Formas de trabalho em que o resultado não tem relação directa, em quantidade ou em qualidade, com a sua duração (por ex. a concepção e o desenho, a criação das mensagens publicitárias para o mercado)

2. Tipos de trabalho em que os resultados continuam a produzir efeitos muito para além do momento em que o trabalho cessou (por ex. uma composição ou interpretação musical para gravação em disco)

3. Crescente importância do trabalho executado a montante e a juzante da produção propriamente dita (estudos de mercado, concepção, desenho, engenharia de produção, promoção do produto, comercialização e distribuição)

4. Peso cada vez maior do trabalho como factor fixo de produção, que não varia com a quantidade produzida (por ex. os citados em 1 e 2)

5. Preponderância do trabalho como manipulação da informação e do conhecimento, em vez da manipulação de materiais (ver no capítulo “A linguagem dos números” dados sobre a distribuição da população activa por profissões onde se pode constatar que a maioria dos assalariados se encontram hoje nas profissões administrativas, comerciais e de serviços)

6. Automatização em larga escala, sob várias formas, quer do trabalho manual quer do trabalho intelectual (em virtude da introdução maciça de equipamentos informáticos em todas as esferas da produção bem como de uma miríade de dispositivos como cartões de crédito, centrais telefónicas com atendimento automático, e muitos outros).

7. Influência crescente da ciência e da técnica no processo produtivo que não se resume à “objectivação” nas máquinas e equipamentos (tradicionalmente o “capital fixo”, a maquinaria industrial, era considerado a face visível da ciência e da técnica na produção, hoje o factor chave na maior parte dos sectores é o conhecimento aplicado pelos trabalhadores no acto da “produção”).

8. Generalização das formas precárias, indirectas ou descaracterizadas do assalariamento (ver números no capítulo “A linguagem dos números – o caso português”)

9. Número cada vez maior de mercadorias intangíveis que podem ser repetidamente consumidas pois o consumo não as destrói (por ex. transmissões televisivas de espectáculos, descarregamento de programas a partir da Internet)

10. Massificação de mercadorias que embora se apresentem num suporte material são intangíveis e em que o consumidor só adquire o direito de uso e não a propriedade (por ex. os vídeos ou DVD’s contendo filmes)

11. Desmaterialização de mercadorias em larga escala (ver exemplos do ponto 9)

12. Excesso de mercadorias relativamente à capacidade de aquisição, em permanência e não apenas durante as “crises”

13. Procura e consumo de mercadorias cada vez mais baseado nas preferências e não nas necessidades

14. Desconhecimento por parte dos consumidores da maior parte dos processos de fabrico e dos tempos de produção das mercadorias

15. Concorrência intensa e acelerada pelos media, quer entre empresas do mesmo sector quer de sectores diferentes, quer operando na mesma região ou dos antípodas (nomeadamente o comércio via Internet)

16. Deslocação das atenções dos agentes económicos, dos responsáveis das empresas, para o problema do escoamento dos produtos em detrimento dos problemas da produção

17. Afirmação crescente do carácter estratégico dos meios de produção ligados ao tratamento da informação (redes de difusão de televisão e rádio, redes de comunicações, grandes bases de dados, etc) em detrimento dos meios de produção próprios das indústrias tradicionais, projectando a sua influência sobre o sistema educativo e a comunicação de massas [4].
18. Desenvolvimento explosivo dos serviços financeiros e dos mercados de capitais que levaram ao surgimento de mercadorias intangíveis altamente baseadas em conhecimento. Todos os dias são compradas e vendidas quantidades gigantescas destas mercadorias e milhões de pessoas em todo o mundo transaccionam expectativas de mais-valias apenas com base no conhecimento [5].
A reavaliação do paradigma marxista à luz destas e de outras anomalias tem que ser feita, quer venha ou não a confirmar-se a nossa hipótese de que essas situações são sintomas do dealbar de um novo Modo de Produção.

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