quinta-feira, 20 de novembro de 2003

01.03 Os patrões desiludidos com Marx

Com o intuito de compreender a forma como na sociedade actual são interpretadas as teorias marxistas aceitemos, como mero exercício, que alguns cidadãos tinham tomado a decisão de se tornarem empresários depois de ler Marx. Tinham tomado essa decisão em consequência das caracterizações e explicações dadas por Marx com respeito ao modo de produção capitalista.
Essas pessoas estariam hoje profundamente desiludidas.
As suas expectativas ter-se-iam mostrado irrealistas e o tipo de vantagens e problemas que teriam encontrado na sua experiência como patrões pouco teria tido a ver com aquilo que leram nos livros marxistas.
Vejamos porquê ?

a) Procuraram incessantemente o lucro como a lógica do Capitalismo impõe. Para isso, em termos marxistas, parecia bastar assalariar trabalhadores e, através da exploração da mais-valia por eles gerada, arrecadar o diferencial resultante entre venda dos produtos e os custos de produção.
O que aconteceu, na prática, é que os produtos produzidos não encontraram comprador.
Por isso não se conseguiu recuperar nem os salários pagos aos trabalhadores assalariados nem os outros custos de produção e em vez de lucro verificou-se um prejuízo.
b) Contavam pagar aos trabalhadores, como parecia indicar Marx, “salários correspondentes ao valor total dos meios de subsistência para os manter a eles e às suas famílias por um determinado período de tempo”. Em vez disso, para contratar bons vendedores ou bons técnicos de informática por exemplo, foi preciso pagar elevados salários e outras benesses como carros de serviço, telemóveis e computadores portáteis.
c) Para evitar a falência da empresa foi necessário tomar uma série de medidas onerosas que incluíram acções de “marketing”, criação de um departamento de assistência pós-venda e de um departamento de design. Tais coisas nunca tinham sido mencionadas por Marx.
d) O plano de recuperação envolveu a adopção de algumas ferramentas de “software” para optimizar os processos administrativos e produtivos o que revelou que afinal uma parte dos trabalhadores era dispensável. Embora Marx ensine que o trabalho humano é a única fonte de valor parecia, paradoxalmente, que quanto menos trabalhadores eram empregues mais lucro se tinha.
e) Quando pensavam que o principal problema seria a luta reivindicativa dos trabalhadores, a quem se estava a subtrair a mais-valia, afinal a maior ameaça veio dos concorrentes da Austrália que começaram a roubar os clientes através da Internet.

Esta caricatura serve para mostrar a importância dos problemas realmente sentidos pelos agentes económicos em contraposição às teorias que nós possamos usar nas nossas conjecturas políticas.
O Capitalismo não existe enquanto entidade consciente de si, o que realmente existe são milhões de empresas e trabalhadores que vão transformando o sistema ao reagir aos problemas que realmente enfrentam (em “O Capital” Marx usa a expressão “modo de produção capitalista” e nunca o termo Capitalismo).
Serve igualmente para ilustrar como, vistos no contexto das empresas capitalistas de hoje, se mostram datados muitos dos ensinamentos de Marx.

É absolutamente crucial que a teoria do valor [1] e os conceitos de mais-valia [1] e de taxa de exploração [1], por exemplo, sejam claramente visualizáveis pelos trabalhadores no dia a dia das suas empresas.
Não é possível ganhar os trabalhadores para a transformação social explicando-lhes o mundo e a sociedade através de conceitos que só são coerentes num “mundo teórico” e portanto oferecendo-lhes modelos desligados da vida real.

Porque é que isso acontece ?
Em nossa opinião isso deve-se ao facto de o Capitalismo estar na sua fase de “decomposição” e mostrar já muitos afloramentos daquele que será o seu sucessor, o Digitalismo.
Não devemos esquecer que Marx produziu a sua genial obra numa fase inicial da maturidade do capitalismo, fundamentalmente na segunda metade do século XIX. Nessa época, em alguns pontos da Europa, ainda nem sequer tinha desabrochado a revolução industrial .

A teoria marxista está impregnada de uma visão em que, com excepção dos períodos de crise, a procura de bens materiais excedia em muito a oferta e em que, por essa razão, a questão do escoamento da produção parecia ser questão menor.
Os bens produzidos e trocados eram essencialmente os bens materiais não tendo qualquer relevância o comércio dos bens intangíveis que invadiram a sociedade actual.
O trabalho que se conhecia na época de Marx era basicamente o trabalho mecânico e o consumo generalizado consistia quase só em produtos essenciais.
Os media não tinham influencia significativa no moldar dos hábitos de consumo e também não se tinha verificado ainda a globalização da concorrência que hoje leva cada empresa a competir pela bolsa finita dos consumidores não só com as suas congéneres mas com todas as outras empresas, mesmo que situadas a milhares de quilómetros de distância.

Marx analisou correctamente o Capitalismo no seu estado “puro” mas não tratou, nem podia tratar, do capitalismo em “decomposição” que está perante os nossos olhos já transfigurado por afloramentos do Digitalismo.
A globalização dos mercados conduziu a uma luta incessante de cada empresa por “um lugar ao Sol”.
A produtividade das tecnologias actuais provoca superabundância crescente da enorme diversidade de mercadorias tangíveis e intangíveis, inimagináveis no tempo em que Marx viveu, o que obriga a lutar desesperadamente no mercado para encontrar um comprador.

O sistema tem procurado encontrar soluções para alargar o mercado, quer a nível interno quer a nível externo, como por exemplo:
- o sobre-endividamento das famílias, induzido pelo sistema financeiro
- o Orçamento do Estado em que através dos impostos se subtrai aos cidadãos meios que podiam ser objecto de poupança e que são relançados no circuito económico (quando existem deficits está-se inclusivamente a lançar no circuito impostos futuros)

Ao nível das empresas as tentativas de sobrevivência tem incidido em três direcções:
- a deslocalização da produção para economias de capitalismo incipiente
- a automatização, para obter ganhos de produtividade
- o recurso ao trabalho não-repetitivo, para diferenciação com base em conhecimento (por ex. design, marketing, etc)

Idealmente estas medidas deviam complementar-se, ou seja, a deslocalização e a automatização deveria libertar trabalhadores do trabalho repetitivo para poderem dedicar-se a tarefas com elevada incorporação de conhecimento. Tal não tem acontecido porque dificilmente esses trabalhadores são rapidamente integráveis nos novos processos (questão não só de formação mas de cultura e prática)

O que acontece, na medida em que estamos ainda na transição do Capitalismo para o Digitalismo, é que o processo em vez de harmonioso é ainda conflitual e explica a maior parte das perplexidades da nossa época.
Toda a turbulência social, económica e laboral deriva assim da crescente dificuldade que as empresas nascidas no Capitalismo encontram em ganhar dinheiro pela exploração pura e simples dos assalariados nos moldes tradicionais.
Ou seja, o modo de produção capitalista está a deixar de atingir os seus objectivos.

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