quinta-feira, 20 de novembro de 2003

02.05 O significado profundo da automatização actual

Dir-se-á que as máquinas não surgiram agora e que já desde o século XIX que a automatização pode ser considerada significativa. Embora isso seja verdade defendemos que a automatização actualmente em curso está a adquirir um carácter diferente:

1. A escala da automatização é incomparavelmente maior do que no passado, podendo ser considerada como regra a seguir

2. A automatização verifica-se tanto no trabalho manual como no trabalho intelectual

3. A relação entre a quantidade e variedade das mercadorias produzidas e o volume de dinheiro ganho pelos trabalhadores e destinado ao consumo vai sendo cada vez mais desequilibrada em favor daquelas já que os dispositivos automáticos não consomem. Esta desproporção crescente entre a oferta e a procura de bens tangíveis e intangíveis é a contradição terrível da fase final do Capitalismo. Há cada vez mais mercadorias e quer o número de compradores quer o seu poder de compra não aumentam ao mesmo ritmo.

Cada país (como cada empresa) tenta transferir o problema, o excedente da oferta em relação à procura, para os outros.
Se o mercado num país se reduz então é preciso vender os produtos nos outros países. Para o próprio mercado não diminuir então os trabalhadores de um dado país podem dedicar-se às profissões não automatizáveis (engenharia, design, por ex.) e transferirem as funções automatizáveis (produção, por ex.) para outros. Se há países com mão-de-obra muito barata então até a automatização pode ser adiada a favor da “deslocalização” que entretanto converte também esses países em mercados de destino.
Ultimamente convencionou-se chamar a isto Globalização.

Todas estas manobras, e outras que não serão aqui tratadas, são paliativos que não resolvem a contradição fundamental do Capitalismo, e que apenas adiam a transformação inevitável do Capitalismo no Digitalismo.
Essa transformação estará completa quando, além dos novos meios de produção que como vimos se vêm multiplicando, surgir também um novo conjunto de relações de produção em substituição do assalariamento actualmente dominante.

Quais são os mecanismos presentes na sociedade que empurram nessa direcção ? É isso que vamos tentar explicar seguidamente.

É do conhecimento geral que nos custos dos produtos têm um peso cada vez maior os estudos de mercado, a concepção, o design, a consultoria de gestão, o marketing, etc [19].
Ou seja, na incessante busca do lucro, da rentabilidade, as empresas recorrem cada vez mais ao trabalho não repetitivo (TNR) para, através da diferenciação, roubarem os clientes às outras empresas, quer sejam do mesmo ramo quer não (quem compra uma casa pode deixar de ter dinheiro para comprar um automóvel, por exemplo).

Portanto mesmo quando os custos de produção correspondem a trabalho repetitivo estes têm um peso cada vez menor em comparação com as componentes, a montante e a jusante da produção propriamente dita, aonde impera o trabalho não repetitivo.

Todas as empresas são inexoravelmente pressionadas pela concorrência para, numa espécie de instinto de sobrevivência, comprarem ou subcontratarem trabalho não repetitivo:

Exemplos:
- Equipamentos informáticos e programas destinados à gestão, para aumentar a eficiência global, controlar a logística ou melhorar o nível do serviço e fidelizar os clientes. Com eles vêm vários tipos de trabalho não repetitivo como o desenho e programação de aplicações, a gestão de projectos, a reengenharia dos processos, etc.

- Estudos de mercado antes da concepção de um novo produto (que podem também resultar na indução de necessidades que os consumidores nem sequer imaginavam que podiam vir a ter).
Aos estudos de viabilidade e aos planos de negócio, que podem prolongar-se por muitos meses, seguem-se o design e as campanhas de marketing. A publicidade constitui um elo muito forte entre o mundo da produção e o mundo do entretenimento também ele, por definição, baseado em trabalho não repetitivo.

- Serviço ao cliente na perspectiva da fidelização o que implica grandes investimentos com a montagem de estruturas de comunicação; o denominado CRM (Customer Relationship Management) para sistematizar o conhecimento resultante da totalidade das interacções com o cliente; o “Customer Care”, autênticos exércitos de vendas que partem do pretexto do suporte pós-venda para encaminhar mais e mais produtos para os mesmos clientes.

Estes são exemplos do tipo de decisões que hoje todas as empresas tomam. Basta percorrer os jornais diários para o perceber, nem é preciso recorrer às revistas sobre gestão empresarial.

Desta invasão em larga escala do trabalho não repetitivo nasce, dentro do próprio Capitalismo, a necessidade imperiosa de substituir o assalariamento clássico por novas relações de produção. Porquê ?
O trabalho não repetitivo (TNR) tem por natureza uma duração indeterminada e imprevisível e a sua qualidade e capacidade de criar valor não dependem do tempo de duração. Ou seja, um processo criativo pode demorar, por exemplo, três meses e ter uma rentabilidade menor do que uma ideia genial surgida numa tarde.
Eis as características que distinguem radicalmente o TNR do trabalho repetitivo:.

a) Indeterminação – como vimos o TNR acaba por envolver sempre um processo intelectual de determinação do seu próprio “procedimento”. A duração da actividade cerebral não é passível de medição e mesmo que se cronometrasse o aparecimento de uma ideia tal teria um valor relativo pois, por norma, o cérebro executa vários “trabalhos” em simultâneo.

b) Imprevisibilidade – mesmo que não houvesse a indeterminação, a verificação aconteceria sempre “a posteriori”, ou seja, depois de concluído sabia-se que determinado TNR teria durado um certo tempo. Nunca antes de um TNR se realizar é possível saber quanto tempo vai demorar ou, no limite, se vai alguma vez produzir o resultado esperado.

Estas características tornam inadequado o típico contrato capitalista do assalariamento em que o empregador compra tempo de força de trabalho e portanto sabe o que vai pagar (P) mas também o que vai receber (R) e pode assim assegurar-se de que R > P.

O assalariamento quando aplicado ao TNR, como ainda hoje geralmente acontece, transforma a actividade económica num jogo de azar. Muitos dos acontecimentos recentes como o fracasso das “dotcom” e as grandes falências americanas têm muito a ver com isto.

Por isso as empresas vêm cada vez com maior intensidade a fugir de um assalariamento em que o trabalhador é contratado potencialmente para toda a vida, para disponibilizar a sua força de trabalho durante X horas por dia na execução de uma determinada função contra o pagamento de um salário, tal como os senhores feudais foram substituindo os pagamentos em géneros e serviços por rendas em dinheiro, e antes deles os “domini” tinham atribuído parcelas aos escravos assegurando-lhes a sua ligação vitalícia à terra e a possibilidade de reterem uma parte do produto do seu trabalho.
Mas agora, tal como então, tais medidas não asseguram a manutenção do staus quo anterior, ao invés constituem um germe das novas relações de produção.
É claro que o desenvolvimento dos novos meios de produção do Digitalismo motiva a procura activa de soluções para ultrapassar esta contradição. É evidente que os seus detentores tentarão fazê-lo em seu favor.
Aos progressistas e aos partidos de esquerda compete lutarem para evitar que as novas relações de produção prolonguem as situações de injustiça herdadas do assalariamento; mas não vale a pena pensar que isso se consegue tentando congelar relações de produção que obviamente estão a deixar de servir.

A teoria do valor de Marx bem como o conceito de mais-valia, com base no tempo de trabalho, deixam neste novo contexto de se aplicar e terão que ser recriados.

É disso que trataremos a seguir.

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