quinta-feira, 20 de novembro de 2003

03.02 Explicação dos paradoxos da teoria do valor baseado no tempo de trabalho

Quando Marx estabeleceu a sua Teoria do Valor estava perante uma sociedade, e uma economia, muito diferentes daquelas em que hoje vivemos. [21]

É perfeitamente compreensível que não fossem considerados muitos aspectos que resultam do desenvolvimento da sociedade durante a segunda metade do século XX, nomeadamente os resultantes da massificação dos média, do processamento e da comunicação de dados em larga escala.

Vejamos que aspectos são esses:

a) Emergência em larga escala do trabalho não repetitivo de duração indeterminada e resultado não garantido (quando se concebe a capa de um CD não se pode estar seguro, antecipadamente, se ela vai contribuir para as vendas e em que escala, nem durante quanto tempo)
b) Surgimento, e em muitos casos preponderância, do trabalho como um factor fixo na produção, não dependente da quantidade produzida (em certos casos como na difusão pela TV ou pela Internet não há qualquer trabalho que varie com o número de consumidores)
c) Crescimento do número de produtos que não são destruídos pelo consumo (um programa de computador não se gasta por maior que seja o número daqueles que o usem).
d) Multiplicação das situações em que os bens não são vendidos, o que se transacciona são licenças de os usar (A musica contida num disco não é vendida mas apenas é licenciada a autorização de a reproduzir, em ambiente privado. A rodela de plástico é apenas um suporte, uma embalagem)
e) Transformação dos hábitos de consumo, em larga escala, pela influência dos meios de comunicação. A conversão do consumo por necessidade num consumo com base em preferências


Em resultado destas transformações criou-se um ambiente de exploração radicalmente diferente daquele que era observável no século XIX.

No tempo de Marx os trabalhadores produziam, por hipótese, em 4 horas o valor correspondente à sua subsistência e ao seu salário, mas continuavam a trabalhar até perfazer as 8 horas sem qualquer pagamento adicional. [22]. Era dessa forma que se gerava a mais-valia [1]. Convém não esquecer que nessa época trabalho era sinónimo de produção, mais concretamente de transformação de materiais, e que as actividades criativas e/ou de investigação além de terem uma dimensão muito limitada estavam fora do universo do trabalho.

Hoje os trabalhadores produzem uma ideia, ou um programa de computador, num tempo difícil de determinar que pode ser dias, meses ou anos. O resultado desse trabalho pode proporcionar durante anos, sem qualquer incorporação de trabalho adicional, receitas e mais-valia a quem o possa comercializar.

Quer a alienação do produtor em relação ao seu produto, quer o grau de exploração, podem assim atingir níveis nunca antes imaginados.

Com a redução, ou desaparecimento, do trabalho directamente incorporado desaparecem também, em muitos casos, as próprias matérias-primas. Para se ter uma ideia da revolução em curso pensemos, para nos mantermos no campo da música, que até a rodela de plástico que constitui o CD desaparecerá em breve pois cada comprador obterá a música pretendida a partir da internet.

Nessa situação deixará de haver custos directos de trabalho, e de materiais, e atingir-se-á quantidades de vendas inimagináveis. Consumar-se-á assim uma forma radical de automatização e desmaterialização, com acréscimos de produção aos quais não correspondem quaisquer rendimentos do trabalho.
A desproporção brutal entre a oferta e a procura de mercadorias, por nós referida no capítulo “O significado profunda da automatização actual”, ver-se-á assim acelerada para níveis que ainda é difícil imaginar.

A consequência desta evolução é esmagadora: a incorporação de trabalho variável anula-se e o trabalho fixo reparte-se por centenas de milhões de cópias.
Se o número de cópias tende para infinito então o valor de troca de cada uma delas, se aplicássemos a teoria marxista do valor baseado no tempo, tenderia para zero. O valor de troca virtualmente desapareceria.

É interessante notar que Marx tenha, já em 1858, vislumbrado esta possibilidade como se pode verificar nos excertos Grundrisse (Ed. PENGUIN BOOKS, 1993, “The chapter on Capital”):

“O sobretrabalho das massas cessa de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral, da mesma forma que o não-trabalho de alguns poucos cessa de ser a condição para o desenvolvimento das capacidades gerais da inteligência humana. É por tudo isto que a produção que repousa sobre o valor de troca se desagrega e o processo da produção material, directo, fica depurado da forma da penúria e da contradição». (trad. dos autores, pag 705).

Isto conduz directamente para a conclusão de que, em vez do tempo, é necessário integrar as quantidades produzidas no cálculo da mais-valia.

Compreende-se que no tempo de Marx não fossem consideradas as quantidades pois que o trabalho era um factor variável; processando-se a produção a cadências conhecidas e estáveis, as quantidades produzidas estavam implícitas no tempo. Bastava portanto lidar com o tempo.
Hoje que o trabalho é cada vez mais um factor fixo na produção, quando consideramos um determinado tempo de trabalho, podemos estar a falar de produções quantitativamente muito diferentes ou mesmo de uma produção nula.

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