quinta-feira, 20 de novembro de 2003

03.03 Valor de troca baseado em conhecimento

Nos capítulos precedentes, recorrendo aos paradoxos, tentámos demonstrar que o conceito de valor de troca, baseado no tempo de trabalho incorporado, já não é operativo nas condições do Digitalismo emergente.

Quando dizemos que o tempo de trabalho não serve como quantificador do valor de troca das mercadorias isso não significa dizer que não é o trabalho a fonte do valor das mercadorias. São duas coisas muito diferentes.

Este equívoco tem passado despercebido desde o tempo de Marx pois, como já explicámos, nos primórdios do Capitalismo o tempo e a quantidade produzida equivaliam-se dado o carácter repetitivo do trabalho.

Neste ponto coloca-se evidentemente a questão seguinte:

- Se já não é a duração de trabalho que determina o valor de troca então qual é a componente do trabalho que interessa para esse efeito?

A nossa resposta é: conhecimento.
Conhecimento incorporado desde a concepção inicial e nas várias fases da produção, conhecimento utilizado para influenciar a operação de troca, que é aquela em que o valor se materializa.
E importa desde já avançar aqui a nossa acepção de conhecimento já que, quer na linguagem corrente quer na terminologia filosófica, a palavra tem assumido os mais diferentes significados [23].


3.3.1 O conhecimento que gera valor


No processo de trabalho em geral há que considerar os seguintes elementos:

- A informação relevante
- Os meios de execução
- O propósito a alcançar

É sempre ao nível do cérebro humano que estes elementos são tratados e que o conhecimento é produzido e por fim “incorporado” no resultado obtido.
É sempre no cérebro humano que o conhecimento se produz de forma dinâmica, em cada actividade realizada; o conhecimento produzido em fases anteriores e presente sob a forma de informação ou de meios de execução de nada vale se não for objecto da atenção e do trabalho de um intelecto que os trate para alcançar um propósito.

Na abordagem tradicional do papel do conhecimento na produção, e Marx não é excepção, deu-se sempre muita relevância ao conhecimento implícito nos instrumentos de trabalho e ignorou-se sistematicamente o “conhecimento vivo” que ocorre durante o processo de trabalho.
Mesmo as abordagens mais recentes como a “gestão do conhecimento” (knowledge management), tão em voga nos meios empresariais, embora reconheçam o papel crucial da informação no processo de trabalho continuam a concentrar-se naquilo que designam como “conhecimento explícito”, conhecimento que foi formalizado e desligado do seu autor, acabando por se transformar num instrumento de trabalho ou num acervo de informação. Por outro lado ainda se acredita na possibilidade de capturar o “conhecimento tácito” como se fosse possível conceber uma linguagem que representasse convenientemente a complexidade do pensamento humano [24].

Como vimos anteriormente só há conhecimento quando intervém um cérebro vivo; é pois um equívoco falar de “conhecimento explícito” ou “conhecimento objectivado” que não são mais do que casos particulares de informação, ou de instrumentos, sem dúvida utilizáveis em fases subsequentes da produção mas que sempre exigirão a intervenção de um cérebro vivo que os interprete na prossecução de um propósito. É nessa intervenção que se realiza a criação de valor.

O grau de repetitividade de uma tarefa pode ser avaliado através da complexidade da informação de partida e do grau de liberdade que os meios de execução permitem.
Uma analogia interessante para entender esta abordagem pode ser feita com a execução musical; se considerarmos que a pauta é a informação relevante e que o instrumento musical é o meio de execução compreendemos o papel crucial do executante que ao interpretá-los e manipulá-los efectivamente produz musica.

Quer a pauta quer o instrumento, embora tenham conhecimento incorporado, são objectos inertes que para pouco servem sem a intervenção do intérprete. Por outro lado quer a pauta quer o instrumento permitem uma gama bastante variada de abordagens, de “interpretações”, pelo que a execução musical constitui uma tarefa essencialmente não repetitiva.

Se compararmos este exemplo com uma tarefa industrial onde se parte de um desenho rigorosamente cotado e de uma máquina de corte, por exemplo, chegamos à conclusão de que a variabilidade “interpretativa” e a influência do operador no resultado obtido são muito menores o que permite concluir tratar-se de uma tarefa muito mais repetitiva.

Neste segundo exemplo o peso do conhecimento incorporado no desenho e na máquina é o mais relevante; o conhecimento “incorporado” pelo trabalho directo no resultado é apenas o da capacidade de leitura do desenho industrial e da correcta manipulação da máquina utilizada.
Estes exemplos remetem mais uma vez para o princípio geral de que é essencialmente o trabalho não-repetitivo que incorpora conhecimento e portanto, acrescenta mais valor ao resultado.

Conhecimento é pois a organização eficaz da informação e dos meios à luz de um propósito.
Para os efeitos da nossa tese o propósito associado aos produtos é sem dúvida que cumpram o seu destino, ser consumidos. É portanto à luz deste propósito, e não de qualquer preconceito ideológico, que o conhecimento incorporado nos produtos tem que ser avaliado.




3.3.2 O valor do conhecimento e o mercado

Nas circunstâncias actuais, quando os consumidores adquirem as mercadorias, fazem-no subordinados às condições seguintes:
• desconhecem qual é “o tempo socialmente necessário” [1] para a sua produção
• decidem a aquisição de forma a optimizar a satisfação das suas necessidades atendendo aos montantes que podem despender
• presumem a satisfação dessas necessidades com base no que julgam saber sobre as mercadorias (mais uma vez, conhecimento)

É verdade que o próprio Marx na dedução da sua teoria do valor também ilustra extensivamente o seu raciocino com descrições de comportamentos dos consumidores, mas os consumidores actuais ao tomar as suas decisões, expressão essencial do valor de troca, não se baseiam no tempo de trabalho pois que o desconhecem.

Baseiam-se sim no conhecimento que possuem sobre as suas necessidades, e no conhecimento que pensam possuir sobre a capacidade de uma mercadoria para satisfazer essas necessidades e sobre o valor comparativo das caracteristicas de cada produto relativamente aos demais.

Os vários tipos de conhecimento pressupostos nas decisões e nas escolhas dos consumidores são, eles próprios, resultado de trabalho humano quer quanto à qualidade intrínseca dos produtos (investigação, inovação, design, engenharia) quer quanto à percepção pelos consumidores dessa qualidade (a educação, o marketing, os estereótipos sociais transmitidos por todo o tipo de objectos de cultura e lazer).
Quanto mais conhecimento for incorporado em todas as fases da vida económica da mercadoria mais probabilidade haverá de as suas qualidades serem reconhecidas pelos consumidores e portanto de estes aceitarem preços, e quantidades, mais elevados.

Esta abordagem implica olhar para o consumo como uma gigantesca “votação”.
Claro que não há uma “régua” para medir o conhecimento.
O único instrumento capaz de avaliar o conhecimento é o cérebro humano que, nesse processo, até produz mais conhecimento.
É exactamente isso que milhões de cérebros fazem quando compram no mercado.
É por isso que temos que deixar os cérebros humanos (de forma intuitiva) fazer a sua medição do conhecimento incorporado em cada produto quando escolhem comprá-lo ou não o comprar, pagar mais ou pagar menos, e depois aceitarmos o resultado dessa "votação".

Não precisamos de calcular em abstracto e antecipadamente o valor de troca. De facto é o mercado que estatisticamente estabelece o valor de todo o trabalho executado até ao momento em que o produto chega às mãos do consumidor (investigação, concepção, design, planeamento, produção, transporte, marketing, venda, etc).

Muitos milhões de decisões de compra definem, de forma “democrática”, qual é o valor que cada produto encerra através do preço e quantidade que aceitam praticar.
Quando os compradores não escolhem um dado produto o seu preço tende a baixar e adequar-se ao valor (conhecimento) que realmente incorpora.
Nas situações em que o produto não reage pela baixa do preço à redução da procura isso resulta, eventualmente, numa redução da mais-valia total gerada pois que nesse caso o número de unidades vendidas será menor.

Há também as situações em que, como consequência de um monopólio ou de extrema raridade do produto, o produtor pode fixar os preços “arbitrariamente”. Nesses casos, independentemente da nossa opinião sobre a sua legitimidade, os produtores usam essa mensagem de marketing , ou seja que o consumidor não tem alternativa, para levarem os consumidores que dela tenham conhecimento a valorizar o produto de forma “anormalmente” alta.

Na teoria marxista, o valor de uma mercadoria é-lhe dado na produção, independentemente do seu destino. É-se assim levado a calcular o valor de troca de mercadorias que, na realidade, podem nunca chegar a ser trocadas. É caso para perguntar porque se chama “valor de troca” se tal valor não tem qualquer dependência do acto da troca. Isto apesar de o próprio Marx considerar que o conceito de mercadoria deixa de ter significado quando desligado da troca. [25]

Nos dias de hoje é impensável esboçar qualquer teoria credível do valor que ignore o destino das mercadorias no mercado.

Não vale a pena ficar com os cabelos em pé quando se fala de mercado como se se tivesse falado do Diabo.
Mercado existiu na sociedade esclavagista e na sociedade feudal, não é exclusivo ou identificador do modo de produção capitalista. Tudo leva a crer que mercado continuará a existir enquanto cada homem precisar de trocar aquilo que produz por aquilo que outros homens produzem. Parece legítimo supor que ainda vai existir por muito tempo.

É chegada a altura de as teorias de raiz marxista fazerem as pazes com o mercado.
Durante muito tempo contrapôs-se o marxismo, a teoria marxista do valor, aos economistas que defendiam as teorias da utilidade marginal e a importância das preferências dos consumidores na determinação do valor [26].

A contradição acima referida é apenas aparente.

Se considerarmos que as preferências dos consumidores são o resultado de trabalho humano e não da “inspiração divina” então a tese de que o valor das mercadorias advém do trabalho humano e a tese de que os consumidores se baseiam nas suas preferências não são contraditórias.

Também é comum desvalorizar-se as preferências dos consumidores na base de que não se fundamentam em “verdadeiro conhecimento” mas sim em induções feitas pela publicidade e outras pressões sociais.

Mas o conceito de conhecimento usado neste texto é muito amplo; trata-se das ideias que se formam a partir da informação disponível, sem qualquer conotação com sabedoria ou qualquer avaliação sobre a bondade dessas ideias.

Por exemplo quando um consumidor escolhe uma dada marca de tabaco com base nas informações de que dispõe nós aqui não atribuímos qualquer significado ao facto de fumar ser um hábito indesejável. Se as atitudes dos consumidores devem ser alteradas tal não constitui o objecto deste livro que se limita a considerá-los como eles efectivamente são.

Esse conhecimento diz respeito às características do produto ou aquilo que o consumidor considera que elas são, às necessidades do consumidor ou à imagem que o próprio delas tem, aos produtos equivalentes ou aquilo que deles se sabe, à evolução da economia e da situação profissional do consumidor ou às expectativas sobre as mesmas, etc, etc.

Neste contexto não faz sentido querermos ser nós a classificar como "racionais" ou não as decisões dos outros. Tal como nas eleições políticas, pensemos nós o que pensarmos sobre a forma como as pessoas votam, quem tem mais votos é que governa.

Se as pessoas são consideradas capazes de eleger o Presidente da República e o Parlamento porque é que são incapazes de "votar" o valor de troca ? Nas eleições políticas também há manipulação como no mercado. Tal como no mercado é o conhecimento, em sentido lato, que define as escolhas eleitorais.

Não faz sentido do ponto de vista da comunicação política considerarmos os cidadãos incapazes de avaliar o conhecimento incorporado nas mercadorias e ao mesmo tempo dizermos que quando compram levam em consideração o "tempo de trabalho socialmente necessário", que ninguém sabe como calcular.



3.3.3 Actualização das fórmulas de Marx

Assim defendemos que o valor de uma mercadoria é o cômputo do conhecimento incorporado por todo o trabalho humano que tem lugar entre o momento em que surge a primeira ideia sobre um produto e o momento em que esse produto é efectivamente transaccionado no mercado.
Perguntarão: e como se calcula esse valor ?
A resposta é simples: o mercado é um excelente (e o único) mecanismo para determinar o valor de troca das mercadorias. É a preferência dos consumidores, através das quantidades adquiridas e dos preços aceites, que determinará o valor de troca de cada mercadoria.
Podemos assim avançar com uma nova aproximação ao valor de troca unitário (VTU):

VTU = VTV / QTV
Em que VTV é o valor total das vendas e QTV é o número total de unidades vendidas para uma dada mercadoria.

Também podemos definir o VAT (valor acrescentado pelo trabalho):
VAT = VTV – CFNT
Em que CFNT é o custo dos factores de produção “não-trabalho”, ou seja, para além do trabalho (materiais, energia, etc)

Uma nova definição de mais-valia (MV) pode ser representada por:
MV = VAT – TPT
Em que TPT é o valor total pago pelo trabalho vivo aplicado no ciclo completo da vida do produto desde a sua concepção até ao momento da venda.

Como resultado das definições anteriores poderá também avançar-se com uma nova abordagem da Taxa de Exploração (TE) [1]:
TE = MV / TPT

É importante notar que nesta nova abordagem quer a mais-valia quer a taxa de exploração não são associadas a um dado período de tempo, dia ou semana de trabalho, mas sim ao ciclo de vida de cada mercadoria ou projecto.
Realmente, ao contrário do que acontecia no tempo de Marx, a acção dos trabalhadores durante um dia não esgota os seus efeitos durante esse período. Quem estava a trabalhar num tear produzia X ou Y metros durante um dia e isso não tinha outras consequências.
Como já tentámos explicar, no trabalho do século XXI é comum acontecer que o trabalho de um dia, ou mesmo um mês, ou um ano produza consequências económicas durante anos (por exemplo quando alguém compõe uma canção está longe de saber quantas edições, e de que dimensão, o registo discográfico vai ter ao longo dos anos).

Também importa notar que não estamos ainda a equacionar a necessidade de distribuir a mais-valia por cada um dos trabalhadores intervenientes nem o modo de realizar tal distribuição de forma justa (no capítulo "Linhas de superação do Capitalismo" avançamos um cenário possível que consiste na negociação sucessiva desde o autor do Projecto Cooperativo até ao último dos executantes)

Outra consequência importante desta nova abordagem é a ligação da teoria ao mundo real aonde os trabalhadores e as suas lutas se situam.

Ao contrário do que se passava anteriormente passa a ser possível computar, em cada empresa, o valor da mais-valia e da taxa de exploração já que os dados necessários para tal (valor total de vendas, valor acrescentado bruto, valor dos salários pagos) estão presentes na contabilidade de qualquer empresa organizada. É muito mais fácil e intuitivo do que manejar conceitos como “trabalho socialmente necessário” [1] ou “trabalho necessário e trabalho excedente” [1].

Ao nível de cada unidade produtiva torna-se possível, o que hoje é impensável, passar à discussão cheia de potencialidades sobre a forma como o excedente é repartido, levantando directamente a questão de quem contribuiu, e com quê, para o excedente.
Põe-se os conceitos ao serviço da acção política do dia a dia.
De um ponto de vista utilitário é também muito mais fácil explicar a exploração, a mais-valia, partindo dos valores que o capitalista realmente obteve do que a partir de conceitos que o cidadão tem muita dificuldade em visualizar. Na prática da luta política e sindical os trabalhadores, que na sua generalidade desconhecem a teoria marxista do valor, pragmaticamente raciocinam desde sempre, isso sim, com base no dinheiro que o patrão “meteu ao bolso”, quando se trata de compreender a exploração.

O trabalho, como qualquer outra actividade humana, ocorre no tempo.
Toda a gente sabe que é o trabalho que gera o valor das mercadorias, toda a gente sabe que todo o trabalho demora um certo tempo, mas daí não resulta que seja a DURAÇÃO o que existe de valioso no trabalho.

Mesmo quando se trata de objectos materiais o que lhes dá valor não é o tempo dispendido para os produzir mas o conhecimento que foi necessário para os conceber e realizar.

Quando se compra, por exemplo uma garrafa de vidro, tanto importa que o vidreiro tenha soprado 2 minutos como 20 minutos. O que a torna valiosa é o facto de ele ter, e o comprador não, o conhecimento para a produzir. Não só o conhecimento individual daquele vidreiro mas todo o conhecimento histórico que está implícito no vidro e na sua manipulação.

Quando, para poder aplicar a teoria do valor baseada no tempo de trabalho, Marx diz que o tempo do operário especializado vale duas vezes o tempo do operário indiferenciado, no fundo o que está a dizer é que o operário especializado incorpora mais conhecimento do que o indiferenciado.
Por outro lado nas condições de produção actuais, durante um dia de trabalho, não se incorpora conhecimento de forma constante e na mesma escala. Não parece portanto razoável valorizar o trabalho com base na classificação abstracta do trabalhador e descartando o real conteúdo do trabalho efectuado [27].

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