quinta-feira, 20 de novembro de 2003

05.02 O conhecimento contra o assalariamento


Tomemos palavras de Marx, escritas em Junho de 1865:
“Penso ter mostrado que as suas lutas pelo nível de salários são incidentes inseparáveis de todo o sistema de salários, que em 99 casos em 100 os seus esforços por elevar os salários são apenas esforços para manter o valor dado do trabalho e que a necessidade de debater o seu preço com o capitalista é inerente à sua condição de terem de se vender eles próprios como mercadorias. Cedendo cobardemente no seu conflito de todos os dias com o capital, certamente que se desqualificariam para o empreendimento de qualquer movimento mais amplo.
Ao mesmo tempo, e completamente à parte da servidão geral envolvida no sistema de salários, a classe operária não deverá exagerar para si própria a eficácia última destas lutas de todos os dias. Não deverá esquecer que está a lutar com efeitos, mas não com as causas desses efeitos; que está a retardar o movimento descendente, mas não a mudar a sua direcção; que está a aplicar paliativos, mas não a curar a doença. Por conseguinte, não deverá estar exclusivamente absorvida nestas inevitáveis lutas de guerrilha que incessantemente derivam das investidas sem fim do capital ou das mudanças do mercado. Deverá compreender que, [juntamente] com todas as misérias que lhe impöe, o sistema presente engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução económica da sociedade. Em vez do motto conservador “salário diário justo para um trabalho diário justo” deverá inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: “Abolição do sistema de salários!”.
...
Os Sindicatos funcionam bem como centros de resistência contra as investidas do capital. Fracassam parcialmente por um uso não judicioso do seu poder. Fracassam geralmente por se limitarem a uma guerra de guerrilha contra os efeitos do sistema existente, cm vez de simultaneamente o tentarem mudar, em vez de usarem as suas forças organizadas como uma alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição ultima do sistema de salários.” (SALÁRIO, PREÇO E LUCRO, trad. portuguesa, Ed. AVANTE, Cap. XIV, pag. 80-81)
Vejamos agora como estas palavras de Marx têm sido esquecidas e como ganham novas ressonâncias no nosso tempo.



5.2.1 O conhecimento na ordem do dia

Antes de mais há que compreender a diferença fundamental entre a visão tradicional e a visão actual da produção que se vem adicionar à anterior:


(clique para ampliar)



Na visão tradicional o conhecimento surgia em dois modos:
1. Implícito na maquinaria e equipamentos em resultado da investigação e desenvolvimento tecnológico anterior
2. Exercido pelos executantes das tarefas e relacionado com a operação das ferramentas e máquinas (o chamado “saber-fazer”)
Na visão actual, para além dos modos tradicionais atrás indicados, o conhecimento surge também como resultado do trabalho, quer para incorporação nas “mercadorias convencionais” quer para se converter, ele próprio, em mercadoria.
O essencial da produção transfere-se das máquinas para os cérebros humanos.
As máquinas, os sistemas digitais, funcionam essencialmente como dispensadores de informação, como calculadores intensivos e como instrumentos de comunicação do conhecimento entre os milhões de trabalhadores e consumidores ligados às redes.
Este salto qualitativo tem consequências revolucionárias:
1. Subalterniza a questão da composição orgânica do capital [1] já que o desenvolvimento económico passa a depender menos dos grandes investimentos em maquinaria pesada
2. Altera a abordagem tradicional dos meios de produção já que os trabalhadores são, eles próprios, os possuidores do principal meio de produção e também porque o desenvolvimento tecnológico proporciona sistemas digitais e comunicações cada vez mais baratos
3. Transfere, em grande medida, a luta de classes para o terreno da apropriação do conhecimento
Claro que os sistemas produtivos baseados em meios de produção “pesados” não desaparecem mas, em todos eles há sempre uma componente de informação que é possível isolar e autonomizar (como se tem visto na prática quando os grupos económicos isolam as operações de tratamento da informação em empresas que nascem por desmembramento das empresas industriais tradicionais).
Em qualquer sistema convencional como uma refinaria ou uma grande montagem de automóveis existe sempre uma área logística, ou de controle de operações, ou de mercado, em que a manipulação da informação é cada vez mais crucial..
Passemos agora a situações da vida real actual.


5.2.2 Disputar o conhecimento
Cìclicamente, os noticiários referem situações de fecho de fábricas na área das confecções e do calçado em Portugal. Os seus proprietários, grandes sociedades estrangeiras, optaram por transferir a produção para países com mão-de-obra mais barata.
Como reagem os sindicatos e as forças de esquerda ?
Exigindo às empresas que se mantenham em Portugal, invocando os problemas sociais que o encerramento das fábricas vai provocar.
Mesmo nos casos em que os edifícios e as máquinas são quase oferecidos pelos anteriores proprietários nunca se vê perspectivar a continuação da laboração por iniciativa, e sob controle, dos próprios trabalhadores. Porquê ?
Na maior parte das empresas os trabalhadores agem numa lógica de meros executantes de tarefas.
Na verdade os factores críticos do sucesso das empresas, os seus mercados, as suas vantagens competitivas, raramente são estudados e acompanhados pelos trabalhadores e seus representantes. Assim quando se chega a situações limite, como o encerramento, não há a mínima preparação a nível do conhecimento para tomar o destino nas suas próprias mãos.
Diríamos mesmo mais, a nível sindical, e mesmo dos partidos de esquerda há um enorme deficit de compreensão acerca dos desafios de gerir uma empresa de forma rentável no nosso tempo. Não é feito qualquer esforço para levar os trabalhadores a entender em que se fundamenta a sobrevivência das empresas, quem na empresas gera valor e competitividade e de que forma.
É mais cómodo lidar com o estereótipo do patrão desumano cujo desejo inconfessado é sugar os trabalhadores até ao tutano.
Como todos sabemos é muito difícil combater um inimigo cujas verdadeiras motivações não compreendemos no entanto é uma tendência comum confundir a explicação das causas com a justificação dos efeitos [34].
Por isso a posição típica da esquerda nos dias de hoje é quase absurda; por um lado diabolisa o patronato, por outro parece outorgar-lhe em exclusividade a capacidade para criar meios de vida para os trabalhadores. Em que ficamos ?
O assalariamento é uma exploração odiosa ou é algo a preservar e manter ?
Não temos nenhuma alternativa ? não somos capazes de criar alternativas ?
Nesse caso a burguesia desempenharia um papel quase humanitário ao garantir a sobrevivência dos trabalhadores!
Tudo isto é paradoxal à luz da citação de Marx apresentada em 5.2.
É absolutamente urgente pôr o conhecimento ao nível das empresas na ordem do dia, pois é nas empresas que estão os trabalhadores e é aí que tudo se decide.
A esquerda sempre olhou de soslaio para a microeconomia, a própria preponderância dos sindicatos relativamente às Comissões de Trabalhadores reflecte tal preconceito, mas isso é um erro de palmatória.
Consideramos ilustrativo um episódio vivido por nós, ocorrido muito antes de a Internet se ter tornado banal, e que decorreu na rede de computadores da IBM, que tinha sido criada para utilizações técnicas e profissionais e que os trabalhadores souberam usar para expressar o seu descontentamento.
Em 1991 o gigante do negócio dos computadores, depois de um longo período de prosperidade, começava a mostrar evidentes sinais de crise em resultado dos erros de estratégia dos seus dirigentes.
Em 1991 e 1992 a IBM registou prejuízos, algo de inédito, apesar de estar a reduzir o número de empregados desde 1985.
O texto de uma intervenção pública do presidente da IBM, John Akers, anunciando os maus resultados do primeiro trimestre foi colocada por um empregado, para discussão, num fórum electrónico a que tinham acesso centenas de milhares de empregados da companhia.
O que se passou a seguir foi uma avalanche de milhares de intervenções de trabalhadores de todo o mundo, quer dos laboratórios quer das fábricas e também da área comercial, criticando não só as chefias intermédias mas o próprio presidente da IBM.
A administração da empresa, atordoada, começou por bloquear os acessos mas depois, perante a onda de protestos, reabriu a discussão embora impondo algumas regras.
Passados alguns meses foi anunciada o afastamento de John Akers e iniciado um atribulado processo para encontrar um substituto para presidente da IBM.
A razão pela qual aqui referimos aquilo que terá provavelmente sido a primeira campanha a nível mundial de contestação da administração de uma das maiores empresas do mundo com recurso aos meios electrónicos, é a de mostrar que as tecnologias podem encerrar grandes virtualidades, quer no plano das lutas quer no plano da transformação das relações de produção.
Um outro caso ilustrativo destas novas potencialidades está a acontecer na Coreia do Sul e é relatado no Expresso de 22 de Março de 2003.
No princípio do ano 2000, Oh Yeon Ho resolveu tornar-se jornalista independente e apostar num jornal através da Internet: “Foi o meu adeus ao jornalismo do século XX”, explicou ao New York Times, “Queria revitalizar o nosso jornalismo. Como não tinha dinheiro, decidi usar a Internet, o que tornou esta estratégia de guerrilha possível”.
O novo jornal “OhMyNews.com” arrancou com quatro jornalistas. À data da noticia eram já quarenta e um editando as histórias enviadas pelos cidadãos-reporteres, inscritos no site e responsáveis por 80% das notícias.
Em três anos o “OhMyNews” tornou-se um dos mais influentes órgãos de comunicação social da Coreia do Sul e furou a barreira do conservadorismo. Os mais de três milhões de cibernautas leitores transformaram-no num jornal de referência que, influenciou decisivamente a eleição de um presidente e enquadrou vagas de manifestações anti-americanas.

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