quinta-feira, 20 de novembro de 2003

04.02 Linhas para a superação do Capitalismo

Não podemos actualmente “descrever” esse sistema, a que chamamos Digitalismo, a não ser sob a forma de utopia, mas pensamos que isso não torna menos fecundo o exercício de reflectir sobre ele.

Na medida em que o carácter justo, ou injusto, do Digitalismo está ainda por determinar e no fundo depende daquilo que todos nós soubermos antecipar e condicionar, é muito importante que sejam desenvolvidos cenários sustentáveis para enquadrar as acções políticas a empreender.

De tudo o que foi dito nos capítulos anteriores consideramos legítimo extrair a seguinte fórmula de superação do Capitalismo:

Um modo de produção em que não predomine o assalariamento, em que todos os intervenientes participem nos projectos exclusivamente em função do seu trabalho e em que os excedentes gerados sejam distribuídos por decisão colectiva dos participantes nos projectos.

Passamos então a apresentar um cenário possível com o intuito de mostrar que a organização em sociedade para produzir poderia deixar de depender do assalariamento e da exploração:

Consideremos a hipótese de no Digitalismo os empreendimentos tenderem a organizar-se sob a forma de Projectos Cooperativos em que todos participam na qualidade exclusiva de trabalhadores cooperantes. Como sempre aconteceu ao longo da história certas formas de organização da produção arcaicas como o assalariamento irão permanecer, ainda que transformadas, mas deixarão de ser determinantes.

Os Projectos Cooperativos irão definir-se pelo seu propósito, pelo resultado que se proponham atingir. Não serão uma organização (empresa) mas sim um contrato entre trabalhadores para alcançar um dado fim, quer ele seja específico quer ele seja genérico, de curta ou de longa duração.

Cada cidadão poderá estar associado a vários projectos simultaneamente desempenhando em cada um deles funções de tipo diferente.




4.2.1 Primado do trabalho, logo do conhecimento


Como temos vindo a defender não só os meios de produção nada valem sem o conhecimento dos que os pôem em movimento como é da aplicação do conhecimento que nasce o valor de troca das mercadorias produzidas.

Mesmo mantendo-se a propriedade privada dos meios de produção estes devem ser vistos como formas de poupança que não proporcionam ao seu detentor qualquer vantagem para além da legítima renda pela utilização.

Corolário da definição anterior é que todos os meios de produção para além do trabalho serão remunerados na base do “aluguer” da sua utilização e não dão direitos especiais aos seus proprietários aquando da distribuição dos excedentes. Aliás os proprietários, enquanto tal, não participarão nos projectos.

Os autores de Projectos Cooperativos e os responsáveis pela sua montagem devem portanto poder aceder a repositórios dos meios de produção existentes, das suas especificações técnicas e das respectivas taxas de aluguer.

Uma dada instalação industrial, por exemplo, poderá ser utizada ao longo da sua vida útil por projectos diferentes, de autores diferentes e produzindo mercadorias distintas. Esta abordagem aumenta a probabilidade de bom uso dos equipamentos dado que não estão dependentes, em exclusivo, da motivação e competência do seu proprietário.

É claro que os equipamentos mais versáteis e adaptáveis terão maior probabilidade de encontrar candidatos à sua utilização e, por outro lado, deverão ter maior longevidade.

Os proprietários poderão simultaneamente ser autores, ou responsáveis pela montagem, de projectos que visem a utilização dos seus próprios meios de produção mas nessa qualidade, como em qualquer outro projecto, terão que se subordinar às regras colectivamente estabelecidas para a distribuição dos excedentes.

Competirá ao Estado legislar sobre os “Contratos Projecto” e velar pelo cumprimento das regras.


4.2.2 Democratização da distribuição dos excedentes


É óbvio que o propósito da produção é gerar excedentes.
Desses excedentes vivem os autores e os concretizadores dos projectos.
É assim hoje e continuará a ser assim num futuro previsível.

Como os Projectos Cooperativos não têm assalariados, e não pagam salários, o excedente é a diferença entre o valor do que se produziu e o valor dos recursos comprados para o projecto (incluindo o “aluguer” dos meios de produção).

A questão que se coloca, da máxima importância, é como garantir que os excedentes são distribuídos correctamente.

Quando tratámos do valor das mercadorias exprimimos a nossa opinião de que o conhecimento incorporado nelas, base do seu valor, só é passível de avaliação por parte de quem as adquire. Só o cérebro humano dos consumidores sabe “avaliar” o conhecimento “contido” nas mercadorias.

Aplicando o mesmo raciocínio podemos concluir que na distribuição dos excedentes dos projectos terão que ser os seus intervenientes a determinar a importância relativa dos contributos dados para a geração desses mesmos excedentes.

Imaginemos um cenário para ilustrar a ideia.

- Alguém concebe um Projecto ABC e, como autor, inclui as especificações num repositório de projectos à procura de quem proceda à sua montagem. O autor propõe também qual a parte do excedente final que pretende obter como pagamento do seu trabalho. Suponhamos que fixa essa percentagem em 5 %

- Os profissionais que se dedicam à montagem de projectos consultam o repositório de projectos alimentado pelos autores.
Consideremos que um desses trabalhadores se interessa pelo Projecto ABC, o considera viável e potencialmente gerador de excedentes, e resolve adoptá-lo.
Se não negociar com o autor um valor mais baixo isso significa que vai ter que trabalhar contando apenas com 95 % dos excedentes potenciais.
Suponhamos que propõe a todos os que com ele participem na montagem 10 % dos excedentes e que se quer renunerar, ele próprio, com 5 %, e isso é aceite.
Passam assim a estar atribuídos 20 % dos excedentes (5% para o autor, 5% para o responsável pela montagem, 10% para os colaboradores deste).

A seguir à fase de montagem o Projecto ABC será posto no repositório dos projectos à procura de um responsável pela gestão propondo aos interessados uma participação de 80 % no excedente.

- Um determinado gestor candidata-se e é aceite para se responsabilizar pelo Projecto ABC. Convida os membros da sua equipa e negoceia com cada um a parte do excedente que lhe cabe. Cada um dos membros da equipa de gestão terá que fazer o mesmo com os colaboradores cuja colaboração deseje obter.

É claro que ninguém é obrigado a aceitar um determinado projecto/tarefa. Cada interveniente toma a sua decisão com base no conhecimento de que dispôe; curriculum dos outros intervenientes, probabilidade de o projecto ter sucesso, projectos alternativos, etc.


Para esta lógica poder funcionar é pressuposto o acordo entre o responsável por cada fase e o candidato a responsável pela seguinte. Por exemplo um autor pode considerar que o historial de um determinado candidato não garante o sucesso da fase da montagem do projecto. Igualmente se pressupõe que um projecto pode sofrer várias alterações ao longo da sua vida, motivadas por conjunturas de mercado, evoluções tecnológicas ou outras. Isso poderá implicar uma redefinição colectiva do papel dos antigos e novos participantes e do respectivo peso na repartição dos excedentes.

Pode acontecer que um mesmo indivíduo actue nuns casos como autor, noutros como gestor e noutros ainda como mero executante.

Tendencialmente, a posição profissional e o sucesso de cada um dependerão essencialmente do seu desempenho. Ninguém ocupará determinadas funções, exercerá autoridade ou receberá dividendos apenas porque herdou uma ou várias empresas.



4.2.3 Cobertura dos riscos e financiamentos


Como já deve ter ficado claro, nos Projectos Cooperativos todos intervêm como trabalhadores não-assalariados e são remunerados com uma parte do excedente gerado.

Coloca-se portanto a questão de saber de que vivem os trabalhadores-cooperantes enquanto o excedente não estiver disponível o que, em muitos casos, pode demorar meses ou até anos.
A mesma questão se põe relativamente aos recursos materiais ou a serviços subcontratados para os projectos que poderão ter que ser pagos antes da geração de receitas.

Também tem que ser equacionada a possibilidade de, em certos casos, os projectos não gerarem excedentes.

Um cenário possível para solucionar estas questão podia consistir na montagem de uma instituição de financiamento de Projectos Cooperativos através de empréstimos que centralizasse a negociação com o sistema bancário .
Todos os projectos contribuiriam com uma parte do seu excedente para um Fundo de Cobertura de Riscos que absorveria os custos dos projectos falhados.

Os financiamentos levantados para materiais ou como adiantamentos aos trabalhadores, no caso de o projecto se concluir deficitário e não poder reembolsar, seriam portanto assumidos pelo Fundo acima referido.

Esta solução implicaria um controle rigoroso do historial profissional dos autores, responsáveis pela montagem de projectos e gestores, na medida em que seriam estes três tipos de trabalhadores-cooperantes os que assumiriam a iniciativa de levantar financiamentos para os projectos nas suas diferentes fases.

Seria aliás necessário estabelecer critérios que reflectissem no curriculum de todos os trabalhadores-cooperantes o sucesso ou o insucesso dos projectos, proporcionalmente à parte do excedente que a cada um fosse atribuída.

As candidaturas ao financiamento dos Projectos Cooperativos seriam avaliadas de acordo com o historial do seu autor, do responsável pela sua montagem e dos seus gestores e executantes e, como é desejável, aqueles que tivessem demonstrado incapacidade reiterada teriam cada vez mais dificuldade em obter financiamentos, asim como em ser aceites pelos eventuais parceiros.



4.2.4 Garantias no acesso à informação

No século XXI a questão da subsistência dos trabalhadores coloca-se de forma muito diferente daquela que Marx podia observar.

Cada vez mais, para os trabalhadores, não se trata já de garantir a subsistência física, num determinado contexto social, mas sim a possibilidade de continuar a informar-se e a aprender para continuar a ser socialmente útil.

Este é o resultado da progressiva passagem do trabalho para o domínio intelectual, numa evolução em que cada vez mais profissões recorrem ao acesso e manipulação da informação em larga escala.

Tradicionalmente já acontecia, e todos nós achávamos normal, que um historiador tivesse que consultar fontes documentais em bibliotecas, um arquitecto necessitasse de ter acesso a obras de outros arquitectos, etc. A diferença é que esse tipo de necessidade vai estender-se a quase todos os tipos de trabalho no Digitalismo.

Tendo presentes algumas tendências preocupantes que se observam actualmente impõe-se regulamentar cuidadosamente a liberdade de acesso à informação, que não deve ser condicionada senão pela justa protecção dos direitos de autoria.
Para sermos mais claros digamos que os detentores de meios de armazenamento, difusão, transporte, comunicação da informação não deverão poder, de forma alguma, interferir na liberdade de acesso à informação, e nomeadamente à Internet.
Essa será uma das responsabilidades do Estado e das organizações internacionais.

4.2.5 A passagem à prática

Todos perguntarão como, aonde e quando ocorrerá o desenvolvimento do Modo de Produção acima descrito em traços largos.

A dúvida pode ser posta da seguinte maneira: se é o conhecimento dos trabalhadores que faz mover, e render, os meios de produção porque é que os trabalhadores não acabam com o Capitalismo recusando o seu conhecimento aos patrões e estabelecendo-se “por conta própria” ?

Todos sabemos que tal tem sido inviável porque a generalidade dos trabalhadores não pode, ou não quer, correr os enormes riscos que nas condições presentes impendem sobre um projecto de carácter cooperativo independente.

Por isso a esquerda deverá estabelecer no seu “programa” que a sociedade dedicará, anualmente, um verba considerável para financiamento de Projectos Cooperativos nos moldes acima descritos. À medida que os projectos forem gerando excedentes, e contribuindo também para o Fundo de Cobertura de Riscos, os recursos disponíveis em cada ano para lançar as novas relações de produção crescerão significativamente.

Aquilo que já hoje, apesar dos riscos e das incertezas, muitos trabalhadores fazem ao tornar-se independentes e ao deixar de trabalhar por um salário podia, e devia, ser intensamente apoiado por fundos públicos. Neste sentido deviam igualmente orientar-se os esforços sindicais e as acções de formação e reciclagem.

Esta é uma proposta que será certamente muito bem acolhida por largos sectores dos trabalhadores e, em particular, pelos empregados nos serviços, especialistas e quadros que todos os dias vendem conhecimento em troca de um salário.

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