quinta-feira, 20 de novembro de 2003

05.03 Especialistas de todos os saberes uni-vos

Como já dissemos é ao nível da empresa que faz sentido compreender tanto a geração de valor e quem a garante, como a distribuição dos excedentes e as suas regras.
Um grande salto em frente seria dado se estas fossem preocupações constantes dos trabalhadores dentro das suas empresas.
A partir desta consciência é que se poderia avançar para a exigência de justiça na distribuição dos excedentes com base na contribuição dada por cada um dos intervenientes. Trabalhadores informados, conscientes dos problemas e potencialidades das suas empresas, constituem uma formidável forma de pressão sobre o patronato.
Portanto, os trabalhadores devem dar na sua luta prioridade à disputa do conhecimento acerca da empresa em que trabalham e do mercado em que se movem.
O patronato deve ter a sensação permanente de que os seus assalariados, com o conhecimento de que dispõem, podem em qualquer momento deixar a sua empresa e criar uma idêntica como concorrente.
O próprio patronato tem vindo a perceber melhor a importância do conhecimento para as organizações e tem adoptado fórmulas para cativar aqueles que considera os recursos mais importantes. Gestores, investigadores, especialistas de marketing e vendas vêem-se nos últimos decénios premiados com benesses como lotes de acções, participação nos lucros, etc.
Os sindicatos limitam-se a exigir a perpetuação do assalariamento: formação profissional (que significa pouco mais do que aprender a executar ordens usando novas máquinas..), aumentos salariais e protecção contra os despedimentos; a conhecida fórmula do “trabalho com direitos”.
Como se, reportando-nos à época feudal, se aconselhasse os que fugiam para os burgos a manter-se nos feudos e a exigir aí um tratamento mais favorável.
Os burgos dos servos de hoje serão provavelmente as pequenas empresas de grupos de especialistas, ágeis, quase sem “meios de produção” convencionais e baseadas na Internet.
Como explicámos no ponto anterior os sistemas digitais são meios de produção de custo bastante moderado o que torna possível o surgimento de pequenas empresas baseadas no tratamento da informação à revelia dos grandes grupos económicos.
Na verdade tem-se verificado um número crescente de registos de empresas que saltou de 7.645, em 1980, para 25.377 em 1997.
Este crescimento exponencial do números de empresas registadas, necessáriamente pequenas, tem como consequência o aparecimento nas estatísticas de muitos assalariados que na realidade não o são; do ponto de vista prático são sócios das empresas desempenhando funções de directores gerais, directores comerciais, directores técnicos, etc.
Estas pequenas unidades, muitas vezes suportadas na Internet, resultam em muitos casos de decisões de especialistas que abandonam os seus empregos assalariados para, em colaboração com outros colegas, tentar formas de distribuição justa dos excedentes que o seu conhecimento pode gerar.
Todos sabemos que este tipo de empreendimento oferece riscos mas sem dúvida reflecte um anseio por parte dos trabalhadores do conhecimento para sacudir o jugo do assalariamento.
Como dizíamos mais atrás estas empresas podem muito bem ser os “burgos” do nosso tempo e nós temos consciência que no período feudal essas experiências, apesar de hoje sabermos que foram o embrião do capitalismo, tiveram também os seus retrocessos.
Aquilo que se impõe aos movimentos de esquerda no momento actual é pois estudar todos os sintomas que nos vêm da sociedade, como aqueles que acabamos de referir, e não desencorajá-los ou, como tantas vezes acontece, ridicularizá-los.
Compete aos movimentos de esquerda explorar o potencial das novas tecnologias para novas formas de luta e também ser os geradores de novas ideias no plano das relações de produção que vão ao encontro dos anseios dos trabalhadores do conhecimento no sentido de superar o assalariamento e, no mesmo passo, a exploração capitalista.
Marx interrogava-se em 1865: “Como é que surge este fenómeno estranho de encontrarmos no mercado um conjunto de compradores possuidores de terra, maquinaria, matéria-prima e meios de subsistência (...) e por outro lado um conjunto de vendedores, que não tem nada para vender excepto a sua força de trabalho...?”
Como a realidade nos mostra, no século XXI não são já “a terra, maquinaria e matérias-primas” que vão constituir os meios de produção essenciais. São a informação (e por isso é vital a luta para garantir o livre acesso), a criatividade, o conhecimento e a capacidade do cérebro humano, que é propriedade de cada um.
Poderá então o Digitalismo ser o embrião da “união restaurada” com que Marx sonhava ? “Uma vez estabelecida a separação entre o Homem de Trabalho e os Instrumentos de Trabalho, semelhante estado de coisas manter-se-á e reproduzir-se-á numa escala constantemente crescente, até que uma nova e fundamental revolução no modo de produção o derrube de novo e restaure a união original numa forma histórica nova.” (SALÁRIO, PREÇO E LUCRO, trad. portuguesa, Ed. AVANTE, Cap. VII, pag. 50).
Se escrevesse nos dias de hoje, Marx seria provavelmente o primeiro o lançar o apelo: “Especialistas de todos os saberes, uni-vos!”.

2 comentários:

Anónimo disse...

A leitura de alguns capítulos de “O Capital” – ainda vou no princípio – não me habilita, como é evidente, a emitir opinião segura sobre o espaço de aplicabilidade, ou não, que o pensamento de Marx possa ainda ter na análise do mundo de hoje. Mas, na minha perspectiva, onde nunca foi possível o entendimento do totalitarismo sempre implícito em qualquer “ismo”, também não tenho isso como decisivo. O que tenho, isso sim, é alguma dificuldade em compreender a necessidade dos autores manterem como premissa, no seu trabalho, como que uma espécie de compromisso de fidelidade a Marx. Bem explícita na ideia de “ajustar o pensamento de Marx”.

E sinto-me relativamente à vontade para questionar este “marxismo afectivo”, já que nem sequer faço parte daqueles, para quem em Marx deslustra o que não é científico. Aliás, o que teria sido dispensável é que ele – ou Engels por ele, ou ambos – tivessem reclamado para a sua obra, de forma tão veemente, a qualidade de “científica”. Com efeito, o entendimento do mundo não se esgota nas pistas proporcionadas pela ciência.

Por exemplo, parece-me que a denúncia da “exploração do homem pelo homem”, através da apropriação da mais-valia, bem como a rejeição dessa condição, pertence muito mais ao foro da moral do que da ciência. E nem por isso perde legitimidade.

Por isso, em meu entender, faria mais sentido que, em vez de ser dado como premissa a actualidade do pensamento de Marx surgisse como conclusão.

Outro aspecto que na obra me parece poder induzir um entendimento errado no leitor menos crítico – embora esteja certo não ser essa a ideia dos autores – diz respeito ao que me parece ser um desenho demasiado preciso e linear no que se refere a previsão do processo de evolução do modo de produção capitalista, e sua super-estrutura, para outro modelo, com base nas técnicas digitais e no conhecimento.

Admito que, num calendário histórico de longo prazo, a hipótese avançada – com mais ou menos percalços – se possa concretizar. Mas também não ignoro que a história não é um processo regular e apresenta descontinuidades. No ocidente, por exemplo, entre o brilho das civilizações antigas e o século das luzes houve a idade média.

Penso por isso que, à geometria demasiado regular da hipótese desenhada pela Rosa e pelo Fernando, fosse preferível uma geometria mais difusa, onde a excessiva nitidez dos contornos tivesse sido substituída por “margens de incerteza”. Que representassem a probabilidade de, por exemplo – entre o capitalismo e o digitalismo – ocorrência de cenários de turbulência social de dimensão e consequências difíceis de prever.

E quanto à proposta – e à sua razão – de dar à nova ordem social a designação de “socialismo”, mesmo antes de a conhecer ou saber se terá alguma relação com as ideias que o termo hoje conota, aí parece-me que os autores ainda se mantêm afectivamente ligados ao tal SP (socialismo prematuro) :-)))

Mas estas breves considerações, que nem sequer crítica se pretendem, estão longe de ter diminuído o interesse que de facto encontrei na leitura do trabalho, e da reflexão que ele me porporcionou. Assim como achei também deveras interessante o artigo publicado na Vértice.

Por isso os meus parabéns a ambos e aguardam-se mais trabalhos.

nelson anjos

F. Penim Redondo disse...

Caro Nelson,

antes de mais os meus agradecimentos por se dar ao trabalho de formular a sua opinião. Nos dias de hoje não é fácil conseguir leitores e, ainda menos, obter deles algum retorno.

Sobre Marx e a nossa "fidelidade" a Marx eu vejo a questão desta forma: ele é incontornável, é quase impossível pensar numa coerência evolutiva da sociedade sem tropeçar em alguma das suas teses.

Não nego que o nosso percurso pessoal nos condiciona e o livro, em grande medida, foi escrito a pensar nos "órfãos do socialismo real". A sua génese em 1990 é sintomática. Não tenho problema nenhum em reconhecer isso.

Apesar disso penso que é claro que certas teses, como a "sucessão dos modos de produção" e a sua lógica, nos são caras enquanto que outras, como a "teoria do valor baseada no tempo de trabalho socialmente necessário", nos parecem bastante ultrapassadas.

Partilho a sua dúvida acerca da necessidade e utilidade de invocar o carácter científico do marxismo.

Quanto à linearidade das nossas "previsões" acerca da evolução futura do modo de produção capitalista:

- quando estamos a defender uma ideia que consideramos inédita temos sempre a tentação de simplificar para garantir a eficácia da comunicação.

- o resultado que gostaríamos de obter era alertar para um conjunto de mecanismos, acelerados pela tecnologia, que estão a funcionar na nossa época e que pensamos estarem a socavar o assalariamento.

- realmente não temos uma visão determinista nem mecânica do que está a acontecer em diversos campos e sob diversas formas. Estamos a pensar iniciar um blog dedicado à colecção de factos sociais e económicos do dia a dia onde tais mecanismos se manifestam.

- Estamos cientes de que neste processo, que não sabemos quando e como vai terminar, podem ocorrer perturbações.
Eu penso, por exemplo, que a experiência do "capitalismo chinês" recriou temporáriamente um "proletariado convencional", numa espécie de sub-"Revolução Industrial". Este facto veio interromper o curso do digitalismo tal como vinha acontecendo mas pode, mais tarde, dar-lhe um impulso decisivo.

Dito isto, apenas para explicar um pouco melhor a nossa posição, devo dizer que o que mais me agradou no seu comentário ao nosso livro foi mencionar a "reflexão que ele me porporcionou".

Sempre foi esse o nosso objectivo principal.

Fernando e Rosa