quinta-feira, 20 de novembro de 2003

02.02 A “base material”, uma questão chave

Pela primeira vez na história os partidos e espíritos progressistas podem observar e condicionar a emergência de uma nova “formação económica e social” [1], com novas “relações de produção” [1] a partir de um novo “modo de produção” [1] e de uma nova “base material” [1].

Os termos são obviamente de Marx e é também a Marx que devemos esta nova possibilidade de olhar para as transformações sociais que nos rodeiam de forma consciente.

A “base material” consiste nos elementos materiais específicos que, numa determinada época, intervêm no processo de produção, os próprios homens e os instrumentos de produção de que dispõem, as realidades naturais sobre as quais essas forças produtivas se exercem e que entram no processo, bem como os modos em que estas forças e esses objectos materiais se combinam e agem no decurso do processo de produção.

Também é importante esclarecer que, para Marx, uma nova “formação económica e social” para começar a existir pressupõe a emergência de uma “base material” diferente daquela que vigorava na “formação” anterior.

Parece por tudo isto evidente a absoluta necessidade, para quem se propõe intervir na sociedade, de monitorar e avaliar em cada momento da sua acção política, o grau de desenvolvimento de uma nova “base material” que possa eventualmente estar a ocorrer.

Esta discussão é relevante não só para tomar decisões sobre a oportunidade das acções revolucionárias e o tipo de intervenções preferíveis para tentar influenciar o processo, mas também para explicar porque é que experiências revolucionárias, como as que ocorreram no Leste europeu, não tiveram sucesso. Em “Do Socialismo prematuro para o Socialismo do futuro” defendemos que tais experiências falharam porque se pretendia erigir uma nova “formação económica e social” sobre uma “base material” que era, no essencial, a do capitalismo atrasado (ver Anexo 1 ).

Uma outra consequência muito importante da correcta interpretação do conceito de “base material” quando compreendemos o seu carácter “espontâneo”, gradual e de longa duração, é a conclusão de que a transição de uma “base material” para outra não é algo que se possa conseguir com um “acto revolucionário” circunscrito no tempo, mas sim o resultado do jogo das forças sociais em presença exercendo-se durante decénios ou séculos sobre os desenvolvimentos científicos e tecnológicos de uma determinada época, num determinado contexto natural e ambiental.

Ganha assim novo sentido a ideia de acção revolucionária já não mais ligada à imagem insurreccional, mas sim como um labor da inteligência para, constantemente e por todos os modos, influenciar a gestação da nova “base material”, já que esta como um “ovo da serpente” contém em si promessas mas também o perigo de novas formas de exploração e opressão. Como a história mostra, os “actos revolucionários” o que fazem é, na presença de novas realidades sociais e económicas adequar, por vezes recorrendo à violência, as superstruturas político-jurídicas.

Dito isto pareceria que as forças de esquerda, e em primeiro lugar os partidos que se intitulam revolucionários deveriam intervir, prioritariamente, nos domínios aonde a nova “base material” está a ser forjada.
E como as tecnologias da informação e comunicação têm o papel principal nessa emergência, deveriam ser os mais conhecedores e utilizadores das tecnologias. Porém, em vez disso, parecem querer fugir delas como entidades maléficas ao serviço da exploração [8].

Desta forma deixou-se em grande medida aos pensadores conservadores, ligados à consultoria e aos temas da gestão, o quase exclusivo de analisarem e preverem as transformações induzidas pela revolução tecnológica (no Anexo 4 figura um artigo de Jorge Nascimento Rodrigues, da JanelaNaWeb, que é um repositório bibliográfico e cronológico dos autores que se têm dedicado a estes temas).

Se podemos considerar absurdas as opiniões que dão um carácter automático no sentido do progresso às transformações tecnológicas, também teremos que considerar anti-marxistas opiniões que se recusam a pôr sequer a hipótese de que o desenvolvimento tecnológico representa uma ameaça para o capitalismo. Faz parte inerente da dialéctica marxista a ideia do desabrochar, dentro dos sistemas, das contradições que os irão pôr em causa.

Em vez de qualificar cada avanço científico e técnico como um “balão de oxigénio” para o capitalismo o que é preciso é tentar compreender em que medida esse avanço não criará condições para superar esse mesmo capitalismo e tentar influenciar no sentido de que tal superação, sendo embora a passagem a um nível superior, não constitua apesar disso um novo modo mais refinado de exploração e opressão.

O primeiro a cometer o erro de escamotear as condições prévias para o desabrochar de um novo modo de produção, com destaque para a “base material”, foi curiosamente o próprio Marx.
Em 1850 convenceu-se de que o capitalismo estava a chegar ao fim.
Eis como em 1895 Engels conta o sucedido na introdução a “As lutas de classes em França de 1848 a 1850”:
“A nós e a todos quantos pensávamos de modo semelhante a história não deu razão. Mostrou claramente que nessa altura o nível de desenvolvimento económico de modo algum estava amadurecido para a eliminação da produção capitalista. Demonstrou isto por meio da revolução económica que alastrava por todo o continente desde 1848 e fizera a grande industria ganhar pela primeira vez foros de cidadania em França, na Áustria, na Hungria, na Polónia e ultimamente na Rússia, e, além disso, tornara a Alemanha num país industrial de primeira categoria. E tudo isto sobre fundamentos capitalistas que, em 1848, ainda tinham grande capacidade de expansão. Mas foi precisamente esta revolução industrial que, pela primeira vez, por toda a parte, trouxe luz à relação entre as classes. Foi ela que eliminou uma quantidade de formas intermédias que provinham do período manufactureiro e, na Europa Oriental mesmo do artesanato corporativo, e que criou uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado da grande industria ao mesmo tempo que os fazia passar ao primeiro plano do desenvolvimento social”(Marx e Engels – Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 195).

Agora vejamos como Marx formalizou no “prefácio de “Para a crítica da Economia Política”, 1859, os ensinamentos retirados do erro cometido:
“ Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as suas forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece aonde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução” (Marx e Engels, Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 531).

Como é que partidos que se reclamam de Marx, perante o texto citado, podem deixar de se colocar e de sentir a responsabilidade de dar resposta às seguintes perguntas: já estão maduras as “condições materiais de existência” das “relações de produção novas e superiores” por que lutamos ? Para ser ainda mais claro: já é possível fundar uma sociedade sustentável sobre uma relação que não seja o assalariamento capitalista ? como e com que “base material” ? com que sustentação prática ?

As forças de esquerda têm fugido desta questão “como o Diabo da cruz” mas é chegada a altura de estudar sem preconceitos a revolução tecnológica em curso.

A representação digital da informação teve, e continua a ter, um efeito brutal sobre todas as ciências e tecnologias. Este “ovo de Colombo” resultou não só nos computadores pessoais e nos CDs/DVDs, formas massificadas desta revolução, mas também revolucionou as telecomunicações, os media, a biologia, a astronáutica, para citar os mais evidentes, e virtualmente todas as ciências, quer as da natureza quer as sociais.

Vários tipos de automação, que explicaremos em capítulos posteriores, invadiram os campos, a fábrica, os escritórios, os hospitais, as escolas, ameaçando tornar dispensáveis muitas das intervenções humanas triviais e conservar apenas aquelas que tenham carácter não-repetitivo, criativo. Como veremos mais à frente está lançada, como nunca na história, uma enorme ameaça ao assalariamento, cerne e coração do capitalismo.

As forças que se consideram de esquerda, em vez de tentarem usar esta oportunidade para superar as formas caducas de exploração limitam-se a lutar pela “preservação dos postos de trabalho” esquecendo que estes postos de trabalho, e de exploração, ao serem preservados também preservam o capitalismo de que são a base.
Claro que tais lutas podem ter que ser conjunturalmente travadas pois os processos de mudança são de longa duração e entretanto as pessoas devem ser protegidas dos seus efeitos nefastos. Mas então é preciso saber-se porque é que se travam e nunca ocultar quais são as formas desejadas, mesmo que impossíveis para já, de superação do assalariamento. E também em que quadro tais superações se tornarão possíveis [9].

As tecnologias digitais encerram um enorme potencial de desenvolvimento humano, de superação da contradição entre trabalho manual e intelectual, de lançamento de formas muito superiores de democracia participativa, de apagamento do Estado (no sentido Marxista do termo [10]), de cooperação interpessoal e internacional, de superação da contradição entre o mercado e o plano, etc.

Podemos estar perante o embrião da “base material” do comunismo, com todas as suas promessas de abundância e desalienação, ou então no limiar de um mundo em que os detentores dos “meios de produção” essenciais (redes de comunicações, bases de dados, software, por ex.) arranjarão maneira de se apropriar de forma parasitária já não de uma parte do dia de cada trabalhador mas do trabalho criativo de milhões de cérebros humanos .

Um bom exemplo de como as grandes organizações transnacionais têm abordado estes aspectos é a admissão, pelo presidente da ORACLE em 1998, da possibilidade “de as patentes e a propriedade intelectual se tornarem componentes de maior valor para as empresas do que a posse de terrenos, instalações e equipamentos” (em LOS ANGELES TIMES, 23 Fevereiro, 1998).
E curiosamente o economista liberal Lester C. Thurow afirmava em 1977: “A Revolução Industrial começou na Inglaterra com um movimento de delimitação das propriedades, que aboliu as terras baldias. O mundo carece agora de um movimento de delimitação socialmente aceite dos direitos de propriedade intelectual, sem o qual assistiremos a uma luta entre os poderosos para se tentarem apropriar de peças valiosas de propriedade intelectual, tal como os poderosos se apoderaram há 300 anos das terras comuns da Inglaterra” ( citado por Dan Schiller, A Globalização e as novas tecnologias, Trad. Portuguesa, Ed. Presença, Lisboa, 2001, pag. 99).

No Capítulo “Linhas de superação do Capitalismo” é apresentado um cenário para o Digitalismo que exemplifica uma hipótese de funcionamento de relações de produção já não baseadas no assalariamento.

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