quinta-feira, 20 de novembro de 2003

02.03 O Digitalismo não é só mais um paradigma técnico-económico

As novas tecnologias perturbam e, muitas vezes, substituem as antigas.
Esta verdade aparentemente universal, que consiste na interacção entre o surgimento de novas tecnologias e as mudanças nos padrões económicos e sociais, pode ser compreendida, de acordo com Kondratiev [11] e Schumpeter [11] , como um processo de destruição criativa.

Segundo estas teorias os ciclos de longa duração no comportamento da economia mundial são o resultado da resistência oferecida pelo subsistema sócio-institucional às transformações necessárias para adaptação às mudanças forçadas pela revolução tecnológica.

O impacto sente-se não apenas na substituição (destruição) das velhas tecnologias, mas nas oportunidades que trazem a novas empresas e nas dificuldades que criam a empresas existentes.

No entanto, também é verdade que nem todos os avanços tecnológicos conseguem alterar significativamente as condições económicas e sociais sendo, numa perspectiva macroeconómica, bastante moderados nos seus efeitos. Esta relação entre as novas tecnologias e a evolução das condições económicas pode ser vista através do chamado paradigma técnico-económico (Christopher Freeman [12], Francisco Louçã [12], Carlota Perez [12]) ou do “modo de desenvolvimento” na terminologia de Manuel Castells [13].
Um paradigma técnico-económico consiste num padrão de desenvolvimento que engloba um conjunto estável de tecnologias nucleares (que produzem um forte impacto na economia e na sociedade) à volta das quais se processa a inovação e a actividade económica.
O facto de as tecnologias nucleares quase não se alterarem durante algum tempo, não quer dizer que não exista progresso económico ou tecnológico. Pelo contrario, são as tecnologias nucleares que definem o conhecimento e os incentivos para que haja inovação e actividade económica.

Neste sentido, a inovação ocorre à medida que as tecnologias nucleares se tornam cada vez mais difundidas e influenciam domínios cada vez mais vastos da produção e distribuição.

E quando ocorre um avanço tecnológico de tão grande impacto, que perturbe as tecnologias nucleares existentes e as formas dominantes de organização económica, surge um novo paradigma técnico-económico.

Neste processo, é importante realçar duas dimensões da teoria do paradigma técnico-
-económico: o tempo e o espaço.
O tempo, porque o processo de mudança tecnológica é visto como uma evolução moderada no âmbito de um certo paradigma técnico-económico, e mais radical entre os paradigmas técnico-económicos, que se sucedem ao longo do tempo.
O espaço, porque não é claro que um certo paradigma técnico-económico vá afectar todas as regiões do mundo de forma semelhante. Alguns países podem originar ou levar ao desenvolvimento de um novo paradigma técnico-económico, podendo outros ficar para trás.

Existe uma ideia importante que une as dimensões espacio-temporais da teoria do paradigma técnico-económico que é a ideia das trajectórias tecnológicas.

A ideia de trajectórias dos sistemas de inovação defende que cada país segue o seu próprio caminho de desenvolvimento, no âmbito do enquadramento geral do paradigma técnico-económico existente (o que não deixa de ser de importância fundamental), mas influenciado pela história passada e pelas condições específicas do contexto local.

Este facto origina a discussão das assimetrias de desempenho dos países, o que não pode ser visto independentemente do que poderíamos chamar acumulação de conhecimento através do processo de aprendizagem.
A aprendizagem reflecte-se em capacidades melhoradas das pessoas e na geração, difusão e utilização de novas ideias. Do mesmo modo, a aprendizagem organizacional reflecte processos sociais conduzidos por culturas colectivas e atitudes de gestão apropriadas. E, em última análise, é a capacidade de gerar continuamente capacidades e ideias - ou seja, acumular conhecimento através da aprendizagem - o motor do crescimento económico de qualquer país.


Quadro 2.1 - Os principais paradigmas técnico-económicos

(clicar para abrir)


Neste contexto importa discutir a relação eventualmente existente entre o Digitalismo e os conceitos de ciclo económico e de paradigma técnico-económico o que implica a questão da relação entre estes conceitos e a definição marxista de modo de produção [1].

A principal diferença entre estes conceitos consiste no facto de que enquanto uma mudança do modo de produção implica a transformação das relações de produção [1] a substituição de um paradigma técnico-económico apenas implica adaptações nos modelos sócio-institucionais de gestão e organização da produção [14].

Enquanto que, por exemplo, a passagem do feudalismo ao capitalismo se caracteriza pelo abandono das relações feudais de servidão em favor do assalariamento, no caso dos sucessivos paradigmas técnico-económicos (como indicados no Quadro anterior) constatamos a permanência do trabalho assalariado.

Quer a teoria dos ciclos quer os paradigmas técnico-económicos situam-se claramente no âmbito do desenvolvimento do sistema capitalista e não pretendem explicar nem o que antecedeu nem o que sucederá a tal sistema.

Trata-se portanto agora de analisar se o advento do Digitalismo pode ser considerado apenas mais um paradigma técnico-económico ou se se trata de um novo modo de produção.

A emergência do conceito digital, ainda no século XIX (Babbage, Boole [15]), tem vindo a fazer um longo percurso cujas consequências só agora começam a frutificar.

O florescimento prático das tecnologias digitais, que só teve o seu advento em meados do século XX, está ainda muito longe de ter dado todos os seus frutos mesmo que a nós nos impressionem muito os desenvolvimentos recentes da Internet e o lançamento da rádio e da televisão digitais.

A representação digital da informação é muito mais do que um mero desenvolvimento tecnológico. A sua importância pode ser comparada à da invenção da imprensa por Gutemberg [16] no Século XV, com as suas importantíssimas consequências no acesso ao conhecimento e na difusão do protestantismo, com uma nova visão da vida e do papel do homem na sociedade e finalmente na emergência do capitalismo. A própria Revolução Industrial é impensável sem os livros.

A descoberta da abordagem binária para a representação da informação [17], quer se trate de textos, de imagens ou de sons, permitiu o desenvolvimento de tecnologias fiáveis e baratas para a criação, manipulação e comunicação da informação numa escala nunca antes imaginada, tendendo para a globalização da generalidade das actividades humanas através das redes de comunicações (curiosamente Babbage é mencionado nos escritos de Marx não pela sua relação com o conceito digital mas a propósito de questões de organização industrial [18]).

A penetração destas tecnologias no mundo da produção e da distribuição de mercadorias ainda tem um longo caminho a percorrer quer no plano quantitativo quer no plano qualitativo mas as economias estão cada vez mais dependentes de actividades ligadas ao tratamento digital da informação e do conhecimento e, como vamos tentar demonstrar, as tendências já hoje observáveis apontam para consequências profundas nas relações de produção.

A nosso ver o Digitalismo comporta alterações de tal profundidade que forçosamente é necessário considerar a emergência não já de um novo paradigma técnico-económico mas sim de um novo modo de produção.

Nomeadamente a substituição do assalariamento, relação de produção típica do capitalismo, por novas formas de nos organizarmos em sociedade para produzir.

Do mesmo modo começa a verificar-se a predominância dos profissionais do conhecimento enquanto base social para a produção de riqueza (Peter Drucker já em 1959 criava a designação “knowledge workers” para definir aqueles cujo trabalho consistia em usar, manipular e produzir informação técnica e especializada (em “Landmarks of Tomorrow”, 1959).

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