quinta-feira, 20 de novembro de 2003

Índice

Do Capitalismo para o Digitalismo


1. Introdução e propósito .....

1.1 Introdução .....

1.2 Reajustar o paradigma marxista .....

1.3 Os patrões desiludidos com Marx .....

1.4 A linguagem dos números – o caso português 

 

2. Um novo Modo de Produção .....

2.1 Digitalismo ou Comunismo – na ordem do dia .....

2.2 A “base material” – uma questão chave .....

2.3 O Digitalismo não é só mais um paradigma técnico-económico .....

2.4 Automatização e trabalho não repetitivo .....

2.5 O significado profundo da automatização actual 

 

3. Reajustar a Teoria do Valor .....

3.1 Paradoxos da teoria do valor de troca baseado no tempo de trabalho .....

3.2 Explicação dos paradoxos da teoria do valor baseado no tempo de trabalho .....

3.3 Valor de troca baseado em conhecimento...........

3.4 As menos-valias 3.4 As menos-valias .....

3.5 Incorporação do conhecimento nas mercadorias 

 

4. A superação do Capitalismo .....

4.1 O equívoco dos meios de produção .....

4.2 Linhas para a superação do Capitalismo .

 .........

5. Conclusão .....

5.0 Uma teoria para os trabalhadores de hoje .....

5.1 Superar os anacronismos ....

5.2 O conhecimento contra o assalariamento ..........

5.3 Especialistas de todos os saberes uni-vos 

 

Anexo 1 - Do socialismo prematuro para o socialismo do futuro, Vértice 1990

Anexo 2 - Comunicação apresentada ao “IFIP 11th Worl Computer Congress”

Anexo 3 - Comunicação apresentada ao XIII Congresso do PCP 

Glossário de termos marxistas 

Notas e citações 

Referências bibliográficas 

Notas biográficas dos autores

01.01 Introdução

Mais de uma década depois de termos publicado “Do Socialismo Prematuro para o Socialismo do Futuro” (Vértice, 1990) retomamos o mesmo tema numa outra perspectiva. Há doze anos a procura de uma explicação para a derrocada da experiência soviética, conduziu-nos a introduzir a questão da inexistência de condições, na URSS do princípio do século XX, para a emergência de um modo de produção [1] sucessor do Capitalismo. Mas, ao tratar da inexistência de uma base material adequada a tal emergência na URSS fomos quase forçados a tomar também posição sobre as implicações políticas do amadurecimento científico e tecnológico na parte final do século XX. No essencial argumentámos, ao arrepio de muitas ideias feitas, que a revolução tecnológica do fim do século XX não constitui um “balão de oxigénio” para o Capitalismo mas sim um desafio tremendo. O conceito de “trabalho não repetitivo” e o correlato desligamento do factor tempo das relações de produção bem como as implicações de um novo modo de produção embrionário, que doravante designaremos por Digitalismo, baseado na informação e sua representação digital, tratados então de forma muito geral e incompleta, deixaram no ar a necessidade de aprofundamento que nos leva agora a tentar avançar mais um degrau. Decidimos incluir neste volume as notas biográficas dos autores porque as consideramos relevantes para a compreensão das teses expostas e para entender as experiências de vida subjacentes à sua gestação. Também foi decidido incluir neste volume alguns textos dos autores que permitem compreender o surgimento e evolução, a partir dos anos oitenta, do essencial das teses agora apresentadas, a saber: - “Do Socialismo Prematuro para o Socialismo do Futuro” - Publicado na Vértice em 1990 (Anexo 1) - “Labor, Consumption, Data Processing and the Future” – Comunicação apresentada ao “IFIP 11th World Computer Congress” em S. Francisco, 1989 (Anexo 2) - Comunicação apresentada ao XIII Congresso do PCP, Loures 1990 (Anexo 3) Os autores fizeram percursos pouco comuns aonde coexistiram a militância política e sindical, o contacto com a inovação tecnológica e as vicissitudes da sua implementação prática, o trabalho como assalariados e os desafios da gestão empresarial. Tais percursos podem com certeza explicar o ineditismo de muitas das formulações presentes neste livro. Dois aspectos marcaram, provavelmente mais do que quaisquer outros, as teses agora avançadas: 1. O trabalho, durante de dezenas de anos, integrando equipas de especialistas e quadros-técnicos 2. A experiência vivida de introdução de tecnologias digitais nas empresas na lógica do aumento da rentabilidade No primeiro caso incluíram-se experiências de tipo sindical, quer a nível nacional quer internacional. Nomeadamente os autores participaram na criação e trabalhos da “IWIS – IBM Workers International Solidarity”, organização de âmbito mundial para a coordenação dos representantes dos empregados da IBM que, depois de um primeiro encontro em Lisboa em 1975, prosseguiu trabalhos em Atenas, Tóquio, Estugarda e Paris. Também participaram nos trabalhos de coordenação, a nível nacional, das estruturas representativas dos trabalhadores dos grandes fornecedores de equipamentos informáticos. Estas experiências levaram a um foco muito especial nas especificidades e motivações dos trabalhadores especializados e nas profissões baseadas em conhecimento. As experiências associadas à introdução de tecnologia nas empresas, que tiveram lugar ao longo de mais de 25 anos, em dezenas de empresas de médio e grande porte, centraram-se quase sempre na questão de transformar as ferramentas digitais em instrumentos de produtividade e de competitividade das empresas. Daqui resultou uma preocupação, que esperamos seja clara ao longo deste livro, de ligar as teorias políticas ao “mundo real” em que os trabalhadores efectivamente operam ultrapassando esquematismos e simplificações que tantas vezes distorcem a acção política e sindical. Se nos reportarmos ao marxismo, que este livro claramente pretende reajustar, há que reformular todos aqueles aspectos que já não estão presentes na sociedade actual e enquadrar todos os aspectos novos que Marx não previu e que, à data em que viveu, não poderia de qualquer forma antecipar. Não se trata de qualquer “traição” ao marxismo mas do seu aprofundamento; a história das ideias mostra que uma nova teoria não tem que negar as anteriores, pode apenas mostrar novos níveis ou desenvolvimentos que anteriormente não tinham sido equacionados. O que importa é que o objectivo de Marx, uma sociedade livre da exploração, se mantenha. No processo de preparação deste livro temos sido objecto de críticas que têm como pressuposto, embora nunca explicitamente afirmado, o facto de nos “atrevermos” a pôr em causa Marx sem o favor abonatório de pelo menos alguns títulos universitários ou a passagem por cargos políticos de alguma projecção mediática. Queremos deixar claro que não partimos de uma atitude académica para juntar mais um livro aos milhares de outros que têm sido escritos sobre todos os “pontos e vírgulas” da obra de Marx. A obra de Marx é, já de si, vasta; se lhe acrescentarmos essa torrente de obras complementares então temos algo que pode ser considerado inextrincável. Este nosso depoimento é apenas uma tentativa de alguém que, pela sua experiência de vida, julga estar em boas condições para compreender os desajustamentos do marxismo à sociedade actual. Em nossa modesta opinião o que falta nas posições dos marxistas, especialmente em Portugal, é a experiência vivida das situações que são supostos pretender transformar. Se virmos bem, todas as lutas de classes e mesmo revoluções que se fizeram desde Marx basearam-se mais na visão intuitiva que as grandes massas possuem do que nas altas teorias que, em toda a sua extensão, nem os intelectuais realmente dominam. Aquilo que os líderes revolucionários sempre têm feito é veicular sínteses mais ou menos simplificadas de maneira a poderem dar aos trabalhadores um enquadramento teórico mínimo para a sua intuição. Quantos militantes políticos gastaram mais do que uma hora a ler, por exemplo, os textos do Capital ? E a reflectir sobre eles ? De certa maneira, no plano prático da política, quase importa mais a crítica daquilo que as pessoas vivas têm na cabeça, quando falam de Marx, do que aquilo que ele realmente queria dizer. Uma experiência interessante consistiu na leitura de versões preliminares do livro por jovens ligados a profissões tecnológicas ou actividades criativas e com opções ideológicas diversas; destacamos, por ser significativo, o comentário surgido várias vezes em que se considerava interessante equacionar a emergência do Digitalismo mas não se entendia a utilidade de, ao mesmo tempo, abordar a necessidade de reajustar o paradigma marxista ou sequer de utilizar o marxismo como referência. Este tipo de comentários reforçou a nossa convicção de que, fossem quais fossem as intenções de Marx o que realmente conta é analisar aquilo que os trabalhadores de hoje conseguiram captar das suas ideias e tentar reajustá-lo caso isso se justifique [2]. Por tudo isto muitas discussões sobre fidelidade ao marxismo, sobre pureza teórica, são completamente absurdas. Na preparação deste livro não se concretizou o famoso ditado “em casa de ferreiro, espeto de pau”. Na verdade grandes porções do texto foram sendo publicadas e discutidas na Internet, no fórum do www.dotecome.com. Agradecemos a todos que participaram nessas discussões. Também agradecemos a Jorge Nascimento Rodrigues que nos autorizou a publicação dos textos incluídos no anexo 4. Assim de alguma forma pode dizer-se que a tecnologia, de que tanto aqui falaremos, deu um importante contributo para este resultado. Importa portanto agradecer a todos aqueles que via Internet foram lendo e criticando o texto à medida que ele foi sendo produzido. Terminamos esta introdução com uma síntese das principais teses que o livro defende: a) o desenvolvimento da tecnologia está a criar condições para a emergência de um novo modo de produção, o Digitalismo, baseado na representação digital da informação e nas comunicações à escala mundial b) um dos aspectos mais importantes dessa emergência é a modificação do trabalho: automatização do trabalho repetitivo (quer manual quer intelectual), preponderância do trabalho como manipulação de informação pelo conhecimento em vez de manipulação de materiais pela ferramenta c) outro aspecto, consequência em grande parte do anterior, é a degradação do assalariamento, a relação de produção base do Capitalismo d) a emergência de um novo modo de produção não significa necessariamente o fim da exploração; há já indícios de velhos senhores do Capitalismo e novos senhores emergentes a tomarem posições para controlar os novos meios de produção e o novo trabalho e) cabe aos partidos progressistas analisar e compreender a emergência da nova “formação económica e social” [1], com novas “relações de produção” [1] a partir de um novo “modo de produção” [1] e de uma nova “base material” [1], para tentar condicioná-los f) cada vez mais o valor das mercadorias se baseia, não no tempo de trabalho, mas no conhecimento nelas incorporado pelo trabalho g) à luz desse facto, a Teoria Marxista do Valor [1] baseado no tempo de trabalho, e que se aplicava bem ao modo de produção capitalista na sua “pureza” inicial, deve ser reavaliada h )há cada vez mais trabalhadores cujo modo de trabalho não se identifica com os modelos marxistas de salário [1] e valor baseados no preço dos meios de subsistência [1] e no tempo de trabalho, e que portanto não sentem que o projecto Comunista lhes diga respeito. i) portanto, sem o reajustamento do paradigma marxista será muito difícil ganhar essas vastas camadas de trabalhadores para a transformação progressista da sociedade.

01.02 Reajustar o paradigma marxista

O nosso objectivo é demonstrar a necessidade de reajustar o paradigma marxista e dar contributos nesse sentido.
Partimos do princípio de que o desenvolvimento da tecnologia está a criar condições para a emergência de um novo modo de produção [1] já não baseado no assalariamento, sendo previsível para breve o surgimento de um novo conjunto de relações de produção [1] e depois a sua rápida generalização tal como aconteceu com o assalariamento no século XIX.
Tudo leva a crer que a luta dos que se reclamam progressistas será travada a partir desse novo modo de produção (o Digitalismo) e que os instrumentos teóricos tradicionais terão que ser ajustados para se manterem adequados nessa nova fase.
Se se mantiver a actual esquizofrenia política que, por "fidelidade" ao paradigma marxista, insiste em lutar nos moldes tradicionais contra um adversário (o Capitalismo) que em grande medida já é outro, então as perspectivas são sombrias.
Se tomarmos como válida a hipótese de que, por acção dos impressionantes desenvolvimentos científicos e tecnológicos, nos encontramos em transição do capitalismo para um novo modo de produção, então coloca-se a questão de perceber de que modo isso afecta o paradigma marxista.

Tomamos como orientação as teses defendidas por Thomas Khun acerca de como se criam e substituem os paradigmas (The Structure of Scientific Revolutions, The University of Chicago Press, 1962) e que passamos a citar:

“A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que a natureza de alguma forma violou as expectativas induzidas pelo paradigma que governa a ciência normal. Continua então com uma exploração mais ou menos vasta da área da anomalia. E só se conclui quando a teoria do paradigma for ajustada de modo a que o anómalo passe a ser expectável. Assimilar um novo tipo de factos requer ajustes mais do que incrementais da teoria, e até que tais ajustes se tenham completado – até que o cientista tenha aprendido a ver a natureza de modo diferente – os novos factos não podem de forma alguma ser considerados científicos.(trad. do autor, pp. 52) ”

Propomo-nos portanto identificar os traços da sociedade actual que não foram previstos, e não são explicados, pela teoria marxista. O objectivo, podemos enunciá-lo desde já, é proceder aos ajustamentos da teoria que permitam, assimilando a realidade actual, devolver-lhe a qualidade de instrumento para a acção.

Dada a extensão da obra de Marx é importante concentrar os esforços no seu núcleo. Assim a reavaliação da teoria do valor [1] baseado no tempo de trabalho e as suas implicações na definição e determinação do conceito de mais-valia absorverão o grosso das atenções.

É notável que Marx tenha, já em 1858, intuído muitas das perplexidades actuais como se pode verificar nestes excertos dos Grundrisse (Ed. Penguin Books, 1993):

«Mas à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza real toma-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de trabalho utilizado e mais do poder dos meios que são colocados em movimento durante o tempo de trabalho, cuja “poderosa eficácia” por sua vez não está em proporção ao tempo de trabalho directo gasto na sua produção mas depende principalmente do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia ou da aplicação desta ciência à produção».
....
«A partir do momento em que o trabalho na sua forma directa tenha cessado de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida e portanto o valor de troca deve deixar de ser a medida do valor de uso. ».
(trad. Do autor, Grundrisse, pp. 704/705).

Não é por acaso que este tópico do capítulo “The chapter on Capital” se denomina “Contradição entre o fundamento da produção burguesa (valor como medida) e o seu desenvolvimento. Máquinas, etc.”. Claramente subjacente está o entendimento de que o valor (baseado no tempo de trabalho) acabará por entrar em conflito com o desenvolvimento das forças produtivas, da produtividade pela automatização, inerente ao próprio capitalismo.

Estes excertos, bem como muitas outras teses avançadas neste capítulo dos Grundrisse, foram em geral negligenciados pelos teóricos e pelos movimentos marxistas. Tal deve-se, com toda a probabilidade, ao facto de as teses sobre o esbatimento da importância do valor baseado no tempo de trabalho terem sido associadas ao surgimento da sociedade comunista e portanto a uma época futura em que os objectivos da luta de classe teriam já sido atingidos. Não tendo assim um interesse imediato para a acção, não foram objecto de estudo e nem sequer de atenção.

Se se continuar a acreditar, sem qualquer base teórica ou fundamento, que ao fim do Capitalismo corresponderá necessariamente o advento do Comunismo [3], será quase impossível aceitar ver indícios de que a formação do valor possa ser feita de outro modo, quando essa fase final ainda não foi atingida. Se for admitida a hipótese da passagem a um modo de produção que não sendo já Capitalismo também não seja o Comunismo então estas questões terão de merecer um outro tipo de análise, ou seja, terá de ser considerada a hipótese de o valor deixar de radicar no tempo de trabalho, já durante o Digitalismo.

A teoria marxista do valor tem limitações que, embora se possam considerar normais à luz das condições impostas pelo tempo histórico em que Marx desenvolveu o seu trabalho, não permitem enquadrar um certo número de situações económicas e laborais dos nossos dias.
Regressando a Kuhn, tais situações terão que ser entendidas como “anómalas” no âmbito do paradigma marxista.

Passamos a listar, sem pretensões de que a lista esteja completa, os fenómenos da sociedade actual que não foram contemplados na teorização marxista:


1. Formas de trabalho em que o resultado não tem relação directa, em quantidade ou em qualidade, com a sua duração (por ex. a concepção e o desenho, a criação das mensagens publicitárias para o mercado)

2. Tipos de trabalho em que os resultados continuam a produzir efeitos muito para além do momento em que o trabalho cessou (por ex. uma composição ou interpretação musical para gravação em disco)

3. Crescente importância do trabalho executado a montante e a juzante da produção propriamente dita (estudos de mercado, concepção, desenho, engenharia de produção, promoção do produto, comercialização e distribuição)

4. Peso cada vez maior do trabalho como factor fixo de produção, que não varia com a quantidade produzida (por ex. os citados em 1 e 2)

5. Preponderância do trabalho como manipulação da informação e do conhecimento, em vez da manipulação de materiais (ver no capítulo “A linguagem dos números” dados sobre a distribuição da população activa por profissões onde se pode constatar que a maioria dos assalariados se encontram hoje nas profissões administrativas, comerciais e de serviços)

6. Automatização em larga escala, sob várias formas, quer do trabalho manual quer do trabalho intelectual (em virtude da introdução maciça de equipamentos informáticos em todas as esferas da produção bem como de uma miríade de dispositivos como cartões de crédito, centrais telefónicas com atendimento automático, e muitos outros).

7. Influência crescente da ciência e da técnica no processo produtivo que não se resume à “objectivação” nas máquinas e equipamentos (tradicionalmente o “capital fixo”, a maquinaria industrial, era considerado a face visível da ciência e da técnica na produção, hoje o factor chave na maior parte dos sectores é o conhecimento aplicado pelos trabalhadores no acto da “produção”).

8. Generalização das formas precárias, indirectas ou descaracterizadas do assalariamento (ver números no capítulo “A linguagem dos números – o caso português”)

9. Número cada vez maior de mercadorias intangíveis que podem ser repetidamente consumidas pois o consumo não as destrói (por ex. transmissões televisivas de espectáculos, descarregamento de programas a partir da Internet)

10. Massificação de mercadorias que embora se apresentem num suporte material são intangíveis e em que o consumidor só adquire o direito de uso e não a propriedade (por ex. os vídeos ou DVD’s contendo filmes)

11. Desmaterialização de mercadorias em larga escala (ver exemplos do ponto 9)

12. Excesso de mercadorias relativamente à capacidade de aquisição, em permanência e não apenas durante as “crises”

13. Procura e consumo de mercadorias cada vez mais baseado nas preferências e não nas necessidades

14. Desconhecimento por parte dos consumidores da maior parte dos processos de fabrico e dos tempos de produção das mercadorias

15. Concorrência intensa e acelerada pelos media, quer entre empresas do mesmo sector quer de sectores diferentes, quer operando na mesma região ou dos antípodas (nomeadamente o comércio via Internet)

16. Deslocação das atenções dos agentes económicos, dos responsáveis das empresas, para o problema do escoamento dos produtos em detrimento dos problemas da produção

17. Afirmação crescente do carácter estratégico dos meios de produção ligados ao tratamento da informação (redes de difusão de televisão e rádio, redes de comunicações, grandes bases de dados, etc) em detrimento dos meios de produção próprios das indústrias tradicionais, projectando a sua influência sobre o sistema educativo e a comunicação de massas [4].
18. Desenvolvimento explosivo dos serviços financeiros e dos mercados de capitais que levaram ao surgimento de mercadorias intangíveis altamente baseadas em conhecimento. Todos os dias são compradas e vendidas quantidades gigantescas destas mercadorias e milhões de pessoas em todo o mundo transaccionam expectativas de mais-valias apenas com base no conhecimento [5].
A reavaliação do paradigma marxista à luz destas e de outras anomalias tem que ser feita, quer venha ou não a confirmar-se a nossa hipótese de que essas situações são sintomas do dealbar de um novo Modo de Produção.

01.03 Os patrões desiludidos com Marx

Com o intuito de compreender a forma como na sociedade actual são interpretadas as teorias marxistas aceitemos, como mero exercício, que alguns cidadãos tinham tomado a decisão de se tornarem empresários depois de ler Marx. Tinham tomado essa decisão em consequência das caracterizações e explicações dadas por Marx com respeito ao modo de produção capitalista.
Essas pessoas estariam hoje profundamente desiludidas.
As suas expectativas ter-se-iam mostrado irrealistas e o tipo de vantagens e problemas que teriam encontrado na sua experiência como patrões pouco teria tido a ver com aquilo que leram nos livros marxistas.
Vejamos porquê ?

a) Procuraram incessantemente o lucro como a lógica do Capitalismo impõe. Para isso, em termos marxistas, parecia bastar assalariar trabalhadores e, através da exploração da mais-valia por eles gerada, arrecadar o diferencial resultante entre venda dos produtos e os custos de produção.
O que aconteceu, na prática, é que os produtos produzidos não encontraram comprador.
Por isso não se conseguiu recuperar nem os salários pagos aos trabalhadores assalariados nem os outros custos de produção e em vez de lucro verificou-se um prejuízo.
b) Contavam pagar aos trabalhadores, como parecia indicar Marx, “salários correspondentes ao valor total dos meios de subsistência para os manter a eles e às suas famílias por um determinado período de tempo”. Em vez disso, para contratar bons vendedores ou bons técnicos de informática por exemplo, foi preciso pagar elevados salários e outras benesses como carros de serviço, telemóveis e computadores portáteis.
c) Para evitar a falência da empresa foi necessário tomar uma série de medidas onerosas que incluíram acções de “marketing”, criação de um departamento de assistência pós-venda e de um departamento de design. Tais coisas nunca tinham sido mencionadas por Marx.
d) O plano de recuperação envolveu a adopção de algumas ferramentas de “software” para optimizar os processos administrativos e produtivos o que revelou que afinal uma parte dos trabalhadores era dispensável. Embora Marx ensine que o trabalho humano é a única fonte de valor parecia, paradoxalmente, que quanto menos trabalhadores eram empregues mais lucro se tinha.
e) Quando pensavam que o principal problema seria a luta reivindicativa dos trabalhadores, a quem se estava a subtrair a mais-valia, afinal a maior ameaça veio dos concorrentes da Austrália que começaram a roubar os clientes através da Internet.

Esta caricatura serve para mostrar a importância dos problemas realmente sentidos pelos agentes económicos em contraposição às teorias que nós possamos usar nas nossas conjecturas políticas.
O Capitalismo não existe enquanto entidade consciente de si, o que realmente existe são milhões de empresas e trabalhadores que vão transformando o sistema ao reagir aos problemas que realmente enfrentam (em “O Capital” Marx usa a expressão “modo de produção capitalista” e nunca o termo Capitalismo).
Serve igualmente para ilustrar como, vistos no contexto das empresas capitalistas de hoje, se mostram datados muitos dos ensinamentos de Marx.

É absolutamente crucial que a teoria do valor [1] e os conceitos de mais-valia [1] e de taxa de exploração [1], por exemplo, sejam claramente visualizáveis pelos trabalhadores no dia a dia das suas empresas.
Não é possível ganhar os trabalhadores para a transformação social explicando-lhes o mundo e a sociedade através de conceitos que só são coerentes num “mundo teórico” e portanto oferecendo-lhes modelos desligados da vida real.

Porque é que isso acontece ?
Em nossa opinião isso deve-se ao facto de o Capitalismo estar na sua fase de “decomposição” e mostrar já muitos afloramentos daquele que será o seu sucessor, o Digitalismo.
Não devemos esquecer que Marx produziu a sua genial obra numa fase inicial da maturidade do capitalismo, fundamentalmente na segunda metade do século XIX. Nessa época, em alguns pontos da Europa, ainda nem sequer tinha desabrochado a revolução industrial .

A teoria marxista está impregnada de uma visão em que, com excepção dos períodos de crise, a procura de bens materiais excedia em muito a oferta e em que, por essa razão, a questão do escoamento da produção parecia ser questão menor.
Os bens produzidos e trocados eram essencialmente os bens materiais não tendo qualquer relevância o comércio dos bens intangíveis que invadiram a sociedade actual.
O trabalho que se conhecia na época de Marx era basicamente o trabalho mecânico e o consumo generalizado consistia quase só em produtos essenciais.
Os media não tinham influencia significativa no moldar dos hábitos de consumo e também não se tinha verificado ainda a globalização da concorrência que hoje leva cada empresa a competir pela bolsa finita dos consumidores não só com as suas congéneres mas com todas as outras empresas, mesmo que situadas a milhares de quilómetros de distância.

Marx analisou correctamente o Capitalismo no seu estado “puro” mas não tratou, nem podia tratar, do capitalismo em “decomposição” que está perante os nossos olhos já transfigurado por afloramentos do Digitalismo.
A globalização dos mercados conduziu a uma luta incessante de cada empresa por “um lugar ao Sol”.
A produtividade das tecnologias actuais provoca superabundância crescente da enorme diversidade de mercadorias tangíveis e intangíveis, inimagináveis no tempo em que Marx viveu, o que obriga a lutar desesperadamente no mercado para encontrar um comprador.

O sistema tem procurado encontrar soluções para alargar o mercado, quer a nível interno quer a nível externo, como por exemplo:
- o sobre-endividamento das famílias, induzido pelo sistema financeiro
- o Orçamento do Estado em que através dos impostos se subtrai aos cidadãos meios que podiam ser objecto de poupança e que são relançados no circuito económico (quando existem deficits está-se inclusivamente a lançar no circuito impostos futuros)

Ao nível das empresas as tentativas de sobrevivência tem incidido em três direcções:
- a deslocalização da produção para economias de capitalismo incipiente
- a automatização, para obter ganhos de produtividade
- o recurso ao trabalho não-repetitivo, para diferenciação com base em conhecimento (por ex. design, marketing, etc)

Idealmente estas medidas deviam complementar-se, ou seja, a deslocalização e a automatização deveria libertar trabalhadores do trabalho repetitivo para poderem dedicar-se a tarefas com elevada incorporação de conhecimento. Tal não tem acontecido porque dificilmente esses trabalhadores são rapidamente integráveis nos novos processos (questão não só de formação mas de cultura e prática)

O que acontece, na medida em que estamos ainda na transição do Capitalismo para o Digitalismo, é que o processo em vez de harmonioso é ainda conflitual e explica a maior parte das perplexidades da nossa época.
Toda a turbulência social, económica e laboral deriva assim da crescente dificuldade que as empresas nascidas no Capitalismo encontram em ganhar dinheiro pela exploração pura e simples dos assalariados nos moldes tradicionais.
Ou seja, o modo de produção capitalista está a deixar de atingir os seus objectivos.

01.04 A linguagem dos números – o caso português



Tomemos, como ilustração, os números do INE (Estatísticas de Emprego) relativos ao quarto trimestre de 2002 em Portugal.


Todos os que em Portugal se orientam pelo paradigma marxista, não podem cometer o erro de ignorar um conjunto de “anomalias” que ocorrem no domínio da composição da sociedade actual no nosso país.
Como se pode constatar quando analisamos a população com mais de 15 anos, ou seja, aqueles que de modo geral são os destinatários da acção política:
1. As empresas, o sector capitalista da sociedade, dão emprego assalariado apenas a cerca 3 milhões de pessoas, apenas 34,3 % da população com mais de 15 anos.
2. Desses assalariados só 2.236.800 têm uma situação estável, contrato sem termo, o que corresponde a 25,6 % da população com mais de 15 anos.
3. Estes números pecam provavelmente por excesso já que é comum nas pequenas empresas (em 1999 havia 193.001 empresas com menos de 10 empregados nos Quadros de Pessoal do Ministério do Trabalho e Segurança Social) os sócios proprietários ocuparem funções assalariadas como directores gerais, directores técnicos, etc. Estes situações não correspondem obviamente a casos típicos de trabalhadores assalariados.
4. Por outro lado constata-se que 2.628.600 cidadãos obtêm os seus rendimentos do Estado o que corresponde a 30 % da população com mais de 15 anos.
5. A População Activa corresponde apenas a 61,6 % da população com mais de 15 anos o que resulta em grande medida das ineficiências do sistema escolar e das políticas de reforma antecipada que mascaram formas de desemprego.
Consideramos estes números um claro sintoma da decadência do assalariamento enquanto expressão do modo de produção capitalista.
O assalariamento capitalista é a forma de subordinar a força de trabalho ao ciclo D-M-D' [1] em que o capitalista chega ao fim do ciclo com D>D', ou seja com mais dinheiro no fim do ciclo do que no princípio.
O trabalho na Administração Pública, e em geral o rendimento obtido do Estado, não se enquadra nesta definição pois não tem como objectivo a obtenção de lucro, nem sequer a recuperação do investimento. Na realidade o sector público paga o emprego que cria, no essencial, com verbas que são retiradas aos salários dos trabalhadores por conta de outrem, através do sistema fiscal.
Os trabalhadores por conta de outrem garantem uma parte muito substancial das receitas do Estado que, para além de pagar os salários dos seus funcionários também faz regressar essas verbas às empresas através das aquisições de bens e serviços.
O Estado funciona assim como um dispositivo para, recuperando uma parte substancial dos salários pagos pelo sector privado, assegurar empregos que este não consegue criar e garantir que uma parte dos salários em vez de se converter em poupança volta a entrar no circuito económico.
Numa sociedade em que o assalariamento cresce principalmente na Administração pública ou tem cada vez mais um carácter precário (contratos a prazo, "a recibo verde" e contratos de trabalho temporário) fragiliza-se o "contrato social" tácito em que se baseia o capitalismo.
Vejamos como evoluiu a situação desde 1979 com base em números do INE constantes do Volume II de “A Situação Social em Portugal 1960-1999” e das “Estatísticas de Emprego” do quarto trimestre de 2002:



Quadro 1.2 – Evolução da origem dos rendimentos



(clicar o quadro para ampliar)


Constata-se que:
1. Mesmo considerando só os pensionistas por velhice (há também as pensões por sobrevivência e por doença) temos desde 1996 um número de cidadãos cujos rendimentos têm origem no Estado superior ao número de cidadãos que auferem os seus rendimentos de contratos estáveis de assalariamento em empresas
2. Desde 1983 o número de cidadãos que obtém os seus rendimentos do Estado tem crescido mais rapidamente (37,9 %) do que os número de trabalhadores por conta de outrem em geral (24,7 %), trabalhadores por conta de outrem em empresas (17,9 %) e trabalhadores por conta de outrem em empresas com contratos estáveis (9,2 %). Qualquer pessoa percebe que esta tendência não é sustentável por muito mais tempo.
Para a legitimação da injustiça capitalista foi sempre usado o pretexto de que era o preço a pagar para que os capitalistas assegurassem os meios de subsistência do povo, ora não é isso que está a acontecer.

Tudo isto traduz o desinteresse e a incapacidade da burguesia para, nas actuais circunstâncias tecnológicas e sociais, arregimentar e explorar milhões de trabalhadores disponíveis. E isso põe justamente o sistema em questão.

Paradoxalmente são as organizações sindicais e políticas de esquerda que insistem no assalariamento não apenas como uma obrigação do patronato mas quase como se o assalariamento fosse algo de socialmente positivo.
Não apresentam qualquer perspectivação de resistência nem abordagem de fórmulas alternativas ao assalariamento que assim aparece ainda hoje, para a maior parte dos jovens, como um objectivo de vida.
Neste ponto os sindicatos não estão sozinhos, também a Estratégia Europeia para o Emprego e o Plano Nacional de Emprego, para os quais contribuiu a Presidência da União Europeia desempenhada por Portugal, parecem ignorar a contradição entre a “sociedade do conhecimento” e o trabalho assalariado [6]
E no entanto, já em 1865, dirigindo-se ao Conselho Geral da Primeira Internacional Marx apresentava como objectivo essencial de luta a abolição do sistema de salários (Salário, Preço e Lucro, pp. 80 [7])
Analisemos agora a distribuição dos 3.004.761 trabalhadores assalariados constantes dos Quadros de Pessoal enviados ao Ministério do Trabalho e Segurança Social em 1999 e da “A Administração Pública em Números” de 1999 :



Quadro 1.3 - Distribuição dos assalariados por profissões



(clicar o quadro para ampliar)


Constata-se que:
1. Só 29,3 % dos assalariados em empresas ou na Administração Pública, são operários ou têm uma actividade similar.
2. Cerca de 1.949.587 cidadãos têm profissões em que se procede ao tratamento de informação e não à transformação de materiais. Correspondem já a 64,9 % dos assalariados nas empresas ou na Administração Pública.
Estes números, permitem concluir que, ao contrário das previsões que se faziam no século XIX, existe um número muito elevado de trabalhadores “não-operários" que provavelmente não se sentirão "retratados" na análise marxista ou, pelo menos, na prática dos partidos marxistas.
Estes trabalhadores, a que se deve juntar um número crescente de operários que lidam com equipamentos complexos, funcionam num ambiente onde cada vez conta menos o tempo de trabalho e cada vez conta mais o conhecimento que injectam nas tarefas realizadas.
Por outro lado a concepção tradicional da luta de classes é de certa forma posta em causa por situações como:
1. Cada vez mais trabalhadores assalariados estão perante um patrão que é um representante do Governo eleito e não um empresário privado
2. Segundo a APETT, Associação Portuguesa de Empresas de Trabalho Temporário, 1,5 % da população activa empregado actua no quadro de contratos de trabalho temporário (DN 14 de Abril 2003). Tal significa que um número substancial de trabalhadores trabalha por “aluguer” em empresas com quem não tem nenhum vínculo contratual. As 380 empresas “alugadoras” de mão-de-obra facturam anualmente 500 milhões de euros.
3. Das 234.850 empresas que enviaram Quadros de Pessoal ao Ministério do Trabalho e Segurança Social em 1999, 193.001 têm até 9 empregados. Isto significa que para muitos trabalhadores assalariados são muito limitadas as possibilidades de organização sindical e de reivindicação laboral dada a reduzida dimensão das unidades em que laboram.
Na constatação de todas estas “anomalias” deve assentar a principal motivação para o reajustamento do paradigma marxista e para uma revisão profunda dos pressupostos em que se tem fundamentado a acção sindical e política.
Sem esse reajustamento muito dificilmente será possível ganhar estas vastas camadas de “trabalhadores do conhecimento” para a transformação progressista da sociedade.
A teoria do valor de Marx, e portanto o valor fundamentado no tempo de trabalho, insere-se na definição por Marx do sistema capitalista. Faz todo o sentido que um modo de produção que paga o trabalho na base do tempo considere o tempo como a base do valor.

Não é crível que Marx pretendesse com isso definir uma tese fora da História (se é que tal é próprio de um marxista) mas sim caracterizar o Capitalismo. Os textos dos Grundrisse anteriormente citados mostram que Marx antevia o fim do valor baseado no tempo de trabalho.

Como veremos mais adiante, a nossa tese defende que no modo de produção emergente, o Digitalismo, o valor baseia-se não no tempo de trabalho mas no "conhecimento incorporado" através do trabalho.
Quando afirmamos isto não estamos a contradizer Marx mas sim a fazer uma extensão da sua teoria do valor para um novo contexto.
Vamos mesmo mais longe, estamos a ir ao encontro do que Marx entendia como objectivo maior dos trabalhadores: acabar com o trabalho assalariado.
Sem se superar a teoria do valor baseada no tempo de trabalho é impossível superar o princípio do assalariamento e visualizar a sua substituição por uma relação de produção de novo tipo.

02.01 Digitalismo ou Comunismo – na ordem do dia

Antes de prosseguir, e para evitar equívocos esclarecemos o sentido em que usamos estes dois termos.
Por Comunismo entendemos uma fase da evolução social em que tenha sido abolida a exploração do homem pelo homem, ou seja, em que se realize de alguma forma a utopia entrevista por Marx e Engels no seu Manifesto: “em vez da velha sociedade burguesa com as suas classes e antagonismos teremos uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”. Uma fase em que ninguém será impedido de usufruir dos bens da sociedade mas em que a ninguém será permitido subjugar o trabalho alheio e apropriar-se dos seus resultados. Uma sociedade em que cada um possa receber de acordo com as suas necessidades e tenha a obrigação de contribuir segundo as suas capacidades. Consideramos esta utopia como uma referência e é nela que pensamos ao utilizar o termo Comunismo que não tem assim rigorosamente nada a ver com as situações históricas que se viveram no chamado “Bloco de Leste”.
Decidimos chamar Digitalismo ao modo de produção [1] que, segundo a nossa hipótese se encontra neste momento em plena construção e em vias de substituir o Capitalismo.
Esse novo modo de produção cuja base material compreende as redes de comunicação de dados, a rádio e televisão difundidas pelo espectro radioeléctrico ou por cabo, todo o tipo de autómatos desde os micro-chips aos super-computadores, os softwares aplicacionais, as bases de dados e os sistemas operativos, e todas as tecnologias conexas que com eles activamente interagem e deles cada vez mais dependem, realiza-se pela captura, armazenamento, tratamento e difusão da informação necessária à produção de conhecimento.
Estas tecnologias, na sua maior parte, nasceram sob patrocínio e controle de entidades públicas, quantas vezes fortemente subsidiadas pelos governos (logo pelos cidadãos) e só nos anos mais recentes, num processo a que se convencionou chamar “desregulamentação”, foram sendo entregues aos interesses privados com o pretexto de que os Estados não têm vocação empresarial.
No caso português a hipótese de alienação de um dos canais da RTP, da Rede Eléctrica Nacional ou da Rede Telefónica Fixa, são só alguns exemplos de transferência do controlo destes poderosos meios de produção para as mãos de interesses privados.
A emergência do Digitalismo não significa o desaparecimento da grande indústria gerada pelo Capitalismo tal como este não fez desaparecer as sociedades agrícolas; o que acontecerá, como aconteceu no passado, é que a indústria sofrerá grandes modificações. Tal como o Capitalismo transformou e industrializou a agricultura, o Digitalismo está a transformar a grande indústria pela injecção em larga escala de sistemas de informação.
Para que se consolide o processo de transição do Capitalismo para o Digitalismo falta, no essencial, forjar novas relações de produção adequadas à poderosíssima base material acima descrita. Como explicou Marx, as relações de produção acompanham o desenvolvimento da base material; a desadequação do assalariamento na actual fase do desenvolvimento da tecnologia constitui precisamente uma contradição fundamental que conduzirá ao fim do Capitalismo.
Tal não significa porém que as novas relações de produção em vias de ser forjadas se caracterizem pela ausência de exploração ou que, ao implantar-se, eliminem os parasitismos de uns grupos sociais à custa de outros.
Aqui reside a questão crucial: está aberta uma janela de oportunidade de transição para o Comunismo mas, se tal não for eficazmente realizado e em tempo, essa janela pode vir a fechar-se por dezenas e dezenas de anos, enquanto o Digitalismo amadurece e, por sua vez, se decompõe e morre.
Por outras palavras, Digitalismo poderá vir a ser uma via para o Comunismo ou então revelar-se um lamentável sucessor dos sistemas injustos e absurdos que o antecederam.
Esta luta para estabelecer relações de produção isentas de injustiça vai ser travada em condições de desvantagem. Os partidos revolucionários, bem como os Estados que se reclamam ou reclamavam do socialismo, não compreenderam o que estava em jogo e perderam a oportunidade de limitar a transferência dos meios de produção de ponta para as mãos dos interesses privados.
Deu-se a mesma importância à privatização das empresas de telecomunicações e das siderurgias; como se a sua influência estratégica fosse idêntica.
Pôs-se a ênfase na perda dos postos de trabalho ou na independência da informação (como no caso da RTP) mas não se percebeu que o que estava em jogo era muito mais profundo e de consequências muito mais graves; o nascimento de um novo modo de produção, que não pode ser travado por maior que seja o voluntarismo politico-sindical.
Por isso pode dizer-se que os interesses privados têm os trunfos neste jogo e que as hipóteses de conseguir impor relações de produção expurgadas da exploração estão em grande medida limitadas.
O nosso intuito é o de ajudar a desvendar os mecanismos económicos presentes na sociedade actual que forçam o desenvolvimento de uma nova abordagem política, no sentido mais estratégico do termo, que permita intervir com eficácia na fase de eclosão do novo modo de produção.

02.02 A “base material”, uma questão chave

Pela primeira vez na história os partidos e espíritos progressistas podem observar e condicionar a emergência de uma nova “formação económica e social” [1], com novas “relações de produção” [1] a partir de um novo “modo de produção” [1] e de uma nova “base material” [1].

Os termos são obviamente de Marx e é também a Marx que devemos esta nova possibilidade de olhar para as transformações sociais que nos rodeiam de forma consciente.

A “base material” consiste nos elementos materiais específicos que, numa determinada época, intervêm no processo de produção, os próprios homens e os instrumentos de produção de que dispõem, as realidades naturais sobre as quais essas forças produtivas se exercem e que entram no processo, bem como os modos em que estas forças e esses objectos materiais se combinam e agem no decurso do processo de produção.

Também é importante esclarecer que, para Marx, uma nova “formação económica e social” para começar a existir pressupõe a emergência de uma “base material” diferente daquela que vigorava na “formação” anterior.

Parece por tudo isto evidente a absoluta necessidade, para quem se propõe intervir na sociedade, de monitorar e avaliar em cada momento da sua acção política, o grau de desenvolvimento de uma nova “base material” que possa eventualmente estar a ocorrer.

Esta discussão é relevante não só para tomar decisões sobre a oportunidade das acções revolucionárias e o tipo de intervenções preferíveis para tentar influenciar o processo, mas também para explicar porque é que experiências revolucionárias, como as que ocorreram no Leste europeu, não tiveram sucesso. Em “Do Socialismo prematuro para o Socialismo do futuro” defendemos que tais experiências falharam porque se pretendia erigir uma nova “formação económica e social” sobre uma “base material” que era, no essencial, a do capitalismo atrasado (ver Anexo 1 ).

Uma outra consequência muito importante da correcta interpretação do conceito de “base material” quando compreendemos o seu carácter “espontâneo”, gradual e de longa duração, é a conclusão de que a transição de uma “base material” para outra não é algo que se possa conseguir com um “acto revolucionário” circunscrito no tempo, mas sim o resultado do jogo das forças sociais em presença exercendo-se durante decénios ou séculos sobre os desenvolvimentos científicos e tecnológicos de uma determinada época, num determinado contexto natural e ambiental.

Ganha assim novo sentido a ideia de acção revolucionária já não mais ligada à imagem insurreccional, mas sim como um labor da inteligência para, constantemente e por todos os modos, influenciar a gestação da nova “base material”, já que esta como um “ovo da serpente” contém em si promessas mas também o perigo de novas formas de exploração e opressão. Como a história mostra, os “actos revolucionários” o que fazem é, na presença de novas realidades sociais e económicas adequar, por vezes recorrendo à violência, as superstruturas político-jurídicas.

Dito isto pareceria que as forças de esquerda, e em primeiro lugar os partidos que se intitulam revolucionários deveriam intervir, prioritariamente, nos domínios aonde a nova “base material” está a ser forjada.
E como as tecnologias da informação e comunicação têm o papel principal nessa emergência, deveriam ser os mais conhecedores e utilizadores das tecnologias. Porém, em vez disso, parecem querer fugir delas como entidades maléficas ao serviço da exploração [8].

Desta forma deixou-se em grande medida aos pensadores conservadores, ligados à consultoria e aos temas da gestão, o quase exclusivo de analisarem e preverem as transformações induzidas pela revolução tecnológica (no Anexo 4 figura um artigo de Jorge Nascimento Rodrigues, da JanelaNaWeb, que é um repositório bibliográfico e cronológico dos autores que se têm dedicado a estes temas).

Se podemos considerar absurdas as opiniões que dão um carácter automático no sentido do progresso às transformações tecnológicas, também teremos que considerar anti-marxistas opiniões que se recusam a pôr sequer a hipótese de que o desenvolvimento tecnológico representa uma ameaça para o capitalismo. Faz parte inerente da dialéctica marxista a ideia do desabrochar, dentro dos sistemas, das contradições que os irão pôr em causa.

Em vez de qualificar cada avanço científico e técnico como um “balão de oxigénio” para o capitalismo o que é preciso é tentar compreender em que medida esse avanço não criará condições para superar esse mesmo capitalismo e tentar influenciar no sentido de que tal superação, sendo embora a passagem a um nível superior, não constitua apesar disso um novo modo mais refinado de exploração e opressão.

O primeiro a cometer o erro de escamotear as condições prévias para o desabrochar de um novo modo de produção, com destaque para a “base material”, foi curiosamente o próprio Marx.
Em 1850 convenceu-se de que o capitalismo estava a chegar ao fim.
Eis como em 1895 Engels conta o sucedido na introdução a “As lutas de classes em França de 1848 a 1850”:
“A nós e a todos quantos pensávamos de modo semelhante a história não deu razão. Mostrou claramente que nessa altura o nível de desenvolvimento económico de modo algum estava amadurecido para a eliminação da produção capitalista. Demonstrou isto por meio da revolução económica que alastrava por todo o continente desde 1848 e fizera a grande industria ganhar pela primeira vez foros de cidadania em França, na Áustria, na Hungria, na Polónia e ultimamente na Rússia, e, além disso, tornara a Alemanha num país industrial de primeira categoria. E tudo isto sobre fundamentos capitalistas que, em 1848, ainda tinham grande capacidade de expansão. Mas foi precisamente esta revolução industrial que, pela primeira vez, por toda a parte, trouxe luz à relação entre as classes. Foi ela que eliminou uma quantidade de formas intermédias que provinham do período manufactureiro e, na Europa Oriental mesmo do artesanato corporativo, e que criou uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado da grande industria ao mesmo tempo que os fazia passar ao primeiro plano do desenvolvimento social”(Marx e Engels – Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 195).

Agora vejamos como Marx formalizou no “prefácio de “Para a crítica da Economia Política”, 1859, os ensinamentos retirados do erro cometido:
“ Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as suas forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece aonde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução” (Marx e Engels, Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 531).

Como é que partidos que se reclamam de Marx, perante o texto citado, podem deixar de se colocar e de sentir a responsabilidade de dar resposta às seguintes perguntas: já estão maduras as “condições materiais de existência” das “relações de produção novas e superiores” por que lutamos ? Para ser ainda mais claro: já é possível fundar uma sociedade sustentável sobre uma relação que não seja o assalariamento capitalista ? como e com que “base material” ? com que sustentação prática ?

As forças de esquerda têm fugido desta questão “como o Diabo da cruz” mas é chegada a altura de estudar sem preconceitos a revolução tecnológica em curso.

A representação digital da informação teve, e continua a ter, um efeito brutal sobre todas as ciências e tecnologias. Este “ovo de Colombo” resultou não só nos computadores pessoais e nos CDs/DVDs, formas massificadas desta revolução, mas também revolucionou as telecomunicações, os media, a biologia, a astronáutica, para citar os mais evidentes, e virtualmente todas as ciências, quer as da natureza quer as sociais.

Vários tipos de automação, que explicaremos em capítulos posteriores, invadiram os campos, a fábrica, os escritórios, os hospitais, as escolas, ameaçando tornar dispensáveis muitas das intervenções humanas triviais e conservar apenas aquelas que tenham carácter não-repetitivo, criativo. Como veremos mais à frente está lançada, como nunca na história, uma enorme ameaça ao assalariamento, cerne e coração do capitalismo.

As forças que se consideram de esquerda, em vez de tentarem usar esta oportunidade para superar as formas caducas de exploração limitam-se a lutar pela “preservação dos postos de trabalho” esquecendo que estes postos de trabalho, e de exploração, ao serem preservados também preservam o capitalismo de que são a base.
Claro que tais lutas podem ter que ser conjunturalmente travadas pois os processos de mudança são de longa duração e entretanto as pessoas devem ser protegidas dos seus efeitos nefastos. Mas então é preciso saber-se porque é que se travam e nunca ocultar quais são as formas desejadas, mesmo que impossíveis para já, de superação do assalariamento. E também em que quadro tais superações se tornarão possíveis [9].

As tecnologias digitais encerram um enorme potencial de desenvolvimento humano, de superação da contradição entre trabalho manual e intelectual, de lançamento de formas muito superiores de democracia participativa, de apagamento do Estado (no sentido Marxista do termo [10]), de cooperação interpessoal e internacional, de superação da contradição entre o mercado e o plano, etc.

Podemos estar perante o embrião da “base material” do comunismo, com todas as suas promessas de abundância e desalienação, ou então no limiar de um mundo em que os detentores dos “meios de produção” essenciais (redes de comunicações, bases de dados, software, por ex.) arranjarão maneira de se apropriar de forma parasitária já não de uma parte do dia de cada trabalhador mas do trabalho criativo de milhões de cérebros humanos .

Um bom exemplo de como as grandes organizações transnacionais têm abordado estes aspectos é a admissão, pelo presidente da ORACLE em 1998, da possibilidade “de as patentes e a propriedade intelectual se tornarem componentes de maior valor para as empresas do que a posse de terrenos, instalações e equipamentos” (em LOS ANGELES TIMES, 23 Fevereiro, 1998).
E curiosamente o economista liberal Lester C. Thurow afirmava em 1977: “A Revolução Industrial começou na Inglaterra com um movimento de delimitação das propriedades, que aboliu as terras baldias. O mundo carece agora de um movimento de delimitação socialmente aceite dos direitos de propriedade intelectual, sem o qual assistiremos a uma luta entre os poderosos para se tentarem apropriar de peças valiosas de propriedade intelectual, tal como os poderosos se apoderaram há 300 anos das terras comuns da Inglaterra” ( citado por Dan Schiller, A Globalização e as novas tecnologias, Trad. Portuguesa, Ed. Presença, Lisboa, 2001, pag. 99).

No Capítulo “Linhas de superação do Capitalismo” é apresentado um cenário para o Digitalismo que exemplifica uma hipótese de funcionamento de relações de produção já não baseadas no assalariamento.

02.03 O Digitalismo não é só mais um paradigma técnico-económico

As novas tecnologias perturbam e, muitas vezes, substituem as antigas.
Esta verdade aparentemente universal, que consiste na interacção entre o surgimento de novas tecnologias e as mudanças nos padrões económicos e sociais, pode ser compreendida, de acordo com Kondratiev [11] e Schumpeter [11] , como um processo de destruição criativa.

Segundo estas teorias os ciclos de longa duração no comportamento da economia mundial são o resultado da resistência oferecida pelo subsistema sócio-institucional às transformações necessárias para adaptação às mudanças forçadas pela revolução tecnológica.

O impacto sente-se não apenas na substituição (destruição) das velhas tecnologias, mas nas oportunidades que trazem a novas empresas e nas dificuldades que criam a empresas existentes.

No entanto, também é verdade que nem todos os avanços tecnológicos conseguem alterar significativamente as condições económicas e sociais sendo, numa perspectiva macroeconómica, bastante moderados nos seus efeitos. Esta relação entre as novas tecnologias e a evolução das condições económicas pode ser vista através do chamado paradigma técnico-económico (Christopher Freeman [12], Francisco Louçã [12], Carlota Perez [12]) ou do “modo de desenvolvimento” na terminologia de Manuel Castells [13].
Um paradigma técnico-económico consiste num padrão de desenvolvimento que engloba um conjunto estável de tecnologias nucleares (que produzem um forte impacto na economia e na sociedade) à volta das quais se processa a inovação e a actividade económica.
O facto de as tecnologias nucleares quase não se alterarem durante algum tempo, não quer dizer que não exista progresso económico ou tecnológico. Pelo contrario, são as tecnologias nucleares que definem o conhecimento e os incentivos para que haja inovação e actividade económica.

Neste sentido, a inovação ocorre à medida que as tecnologias nucleares se tornam cada vez mais difundidas e influenciam domínios cada vez mais vastos da produção e distribuição.

E quando ocorre um avanço tecnológico de tão grande impacto, que perturbe as tecnologias nucleares existentes e as formas dominantes de organização económica, surge um novo paradigma técnico-económico.

Neste processo, é importante realçar duas dimensões da teoria do paradigma técnico-
-económico: o tempo e o espaço.
O tempo, porque o processo de mudança tecnológica é visto como uma evolução moderada no âmbito de um certo paradigma técnico-económico, e mais radical entre os paradigmas técnico-económicos, que se sucedem ao longo do tempo.
O espaço, porque não é claro que um certo paradigma técnico-económico vá afectar todas as regiões do mundo de forma semelhante. Alguns países podem originar ou levar ao desenvolvimento de um novo paradigma técnico-económico, podendo outros ficar para trás.

Existe uma ideia importante que une as dimensões espacio-temporais da teoria do paradigma técnico-económico que é a ideia das trajectórias tecnológicas.

A ideia de trajectórias dos sistemas de inovação defende que cada país segue o seu próprio caminho de desenvolvimento, no âmbito do enquadramento geral do paradigma técnico-económico existente (o que não deixa de ser de importância fundamental), mas influenciado pela história passada e pelas condições específicas do contexto local.

Este facto origina a discussão das assimetrias de desempenho dos países, o que não pode ser visto independentemente do que poderíamos chamar acumulação de conhecimento através do processo de aprendizagem.
A aprendizagem reflecte-se em capacidades melhoradas das pessoas e na geração, difusão e utilização de novas ideias. Do mesmo modo, a aprendizagem organizacional reflecte processos sociais conduzidos por culturas colectivas e atitudes de gestão apropriadas. E, em última análise, é a capacidade de gerar continuamente capacidades e ideias - ou seja, acumular conhecimento através da aprendizagem - o motor do crescimento económico de qualquer país.


Quadro 2.1 - Os principais paradigmas técnico-económicos

(clicar para abrir)


Neste contexto importa discutir a relação eventualmente existente entre o Digitalismo e os conceitos de ciclo económico e de paradigma técnico-económico o que implica a questão da relação entre estes conceitos e a definição marxista de modo de produção [1].

A principal diferença entre estes conceitos consiste no facto de que enquanto uma mudança do modo de produção implica a transformação das relações de produção [1] a substituição de um paradigma técnico-económico apenas implica adaptações nos modelos sócio-institucionais de gestão e organização da produção [14].

Enquanto que, por exemplo, a passagem do feudalismo ao capitalismo se caracteriza pelo abandono das relações feudais de servidão em favor do assalariamento, no caso dos sucessivos paradigmas técnico-económicos (como indicados no Quadro anterior) constatamos a permanência do trabalho assalariado.

Quer a teoria dos ciclos quer os paradigmas técnico-económicos situam-se claramente no âmbito do desenvolvimento do sistema capitalista e não pretendem explicar nem o que antecedeu nem o que sucederá a tal sistema.

Trata-se portanto agora de analisar se o advento do Digitalismo pode ser considerado apenas mais um paradigma técnico-económico ou se se trata de um novo modo de produção.

A emergência do conceito digital, ainda no século XIX (Babbage, Boole [15]), tem vindo a fazer um longo percurso cujas consequências só agora começam a frutificar.

O florescimento prático das tecnologias digitais, que só teve o seu advento em meados do século XX, está ainda muito longe de ter dado todos os seus frutos mesmo que a nós nos impressionem muito os desenvolvimentos recentes da Internet e o lançamento da rádio e da televisão digitais.

A representação digital da informação é muito mais do que um mero desenvolvimento tecnológico. A sua importância pode ser comparada à da invenção da imprensa por Gutemberg [16] no Século XV, com as suas importantíssimas consequências no acesso ao conhecimento e na difusão do protestantismo, com uma nova visão da vida e do papel do homem na sociedade e finalmente na emergência do capitalismo. A própria Revolução Industrial é impensável sem os livros.

A descoberta da abordagem binária para a representação da informação [17], quer se trate de textos, de imagens ou de sons, permitiu o desenvolvimento de tecnologias fiáveis e baratas para a criação, manipulação e comunicação da informação numa escala nunca antes imaginada, tendendo para a globalização da generalidade das actividades humanas através das redes de comunicações (curiosamente Babbage é mencionado nos escritos de Marx não pela sua relação com o conceito digital mas a propósito de questões de organização industrial [18]).

A penetração destas tecnologias no mundo da produção e da distribuição de mercadorias ainda tem um longo caminho a percorrer quer no plano quantitativo quer no plano qualitativo mas as economias estão cada vez mais dependentes de actividades ligadas ao tratamento digital da informação e do conhecimento e, como vamos tentar demonstrar, as tendências já hoje observáveis apontam para consequências profundas nas relações de produção.

A nosso ver o Digitalismo comporta alterações de tal profundidade que forçosamente é necessário considerar a emergência não já de um novo paradigma técnico-económico mas sim de um novo modo de produção.

Nomeadamente a substituição do assalariamento, relação de produção típica do capitalismo, por novas formas de nos organizarmos em sociedade para produzir.

Do mesmo modo começa a verificar-se a predominância dos profissionais do conhecimento enquanto base social para a produção de riqueza (Peter Drucker já em 1959 criava a designação “knowledge workers” para definir aqueles cujo trabalho consistia em usar, manipular e produzir informação técnica e especializada (em “Landmarks of Tomorrow”, 1959).

02.04 Automatização e trabalho não repetitivo

Antes de prosseguir importa esclarecer o significado dos termos utilizados.

Automatização

Automatização, no contexto desta discussão, significa a redução do trabalho humano directo na produção de bens ou serviços economicamente relevantes, pelo uso de dispositivos automáticos.

Como a discussão incide sobre a automatização no Capitalismo é claro que quando falamos de automatização estamos a falar da substituição da mercadoria força de trabalho pela introdução de dispositivos automáticos.

Os dispositivos automáticos (DA) são muito variados e vão desde a simplicidade de um cartão de crédito até à complexidade de um super computador, de uma rede internacional de comunicações ou de um pacote de software de gestão.

A automatização pode ser total ou parcial, ou seja, para uma determinada tarefa pode haver uma substituição de todo o trabalho humano directo ou apenas de uma parte
De facto a automatização pode reduzir o trabalho humano directo de três formas:

1. Pela produtividade – O aumento da produtividade resultante do uso de dispositivos automáticos (DA) pelos trabalhadores permite a redução do tempo de trabalho directo numa determinada tarefa
(Ex: Com a ajuda de um programa de facturação uma pessoa produz as facturas que, noutras circunstâncias, exigiriam a intervenção de três trabalhadores).

2. Pela transformação – As tarefas sofrem uma transformação ou sofrem o efeito de transformações ocorridas a montante ou a jusante na cadeia de produção. As tarefas continua a ser executadas por outros trabalhadores mas o tempo total do processo torna-se menor depois da automatização
(Ex: os vendedores escrevem no seu próprio computador as propostas para os clientes e por isso desaparecem as dactilógrafas)

3. Pela eliminação – A tarefa deixa de ser feita pelos humanos, os DA substituem directamente os trabalhadores.
(Ex: A central telefónica automática distribui os telefonemas pelos trabalhadores da empresa pelo que deixa de haver telefonistas)

Trabalho não repetitivo (TNR)


O trabalho não repetitivo (TNR) é aquele cuja execução não pode ser objecto de descrição procedimental prévia. Em TNR é impossível “ensinar” a outrem um procedimento que, com elevada probabilidade, produza um determinado resultado.

Exemplos: não é possível dizer como se pinta um bom quadro a óleo, como se convence alguém a assinar um contrato, como se desenha um automóvel de sucesso, etc.

O TNR pode também ocorrer quando, embora exista um procedimento, este está muito dependente das circunstâncias ou das especificidades da sua aplicação.
(Ex: A cirurgia quando se exerce está altamente dependente das características físicas e orgânicas do paciente e das complicações que possam ocorrer).

Pela sua própria natureza o trabalho não repetitivo não é passível de automatização pois os dispositivos automáticos são essencialmente baseados em procedimentos.


Viabilidade da automatização


Não se pense no entanto que só o trabalho não repetitivo (TNR) escapa à automatização.

A viabilidade da automatização, em Capitalismo, não é apenas um problema tecnológico. Depende também de factores económicos, psicológicos, etc.
Mesmo que seja tecnicamente possível produzir um determinado automatismo isso não significa que ele seja economicamente atraente ou mesmo que ele seja socialmente viável.

(Ex: Numa fábrica de componentes para automóveis no distrito de Setúbal, nos anos 90, duas mulheres recolhiam de um tapete rolante uma peça com cada uma das mãos e arrumavam-nas em caixas de cartão. Parecia ser um trabalho totalmente mecânico e obviamente desinteressante. O Director da Produção ao ser questionado acerca da eventual automatização desta tarefa explicou que não era economicamente justificável porque as mulheres:
a) quando pegavam nas peças, antes de as pôr nas caixas, faziam uma inspecção visual que nenhum robot podia substituir.
b) podiam ser substituídas por outras em qualquer momento se decidissem ir-se embora pois não era necessária nenhuma habilitação especial
c) ganhavam um salário muito baixo
Trata-se de um exemplo em que uma capacidade humana que quase todos temos, a visão, constituía uma barreira técnica à automatização, a que os baixos salários acrescentavam uma barreira económica.

Está banalizada a ideia errada de que a automatização ameaça todas as tarefas que sejam manuais ou simples. Pelo contrário podemos dizer que algumas das tarefas “simples” mais depreciadas socialmente podem ser muito difíceis de substituir (Ex: A tarefa do estafeta externo de uma empresa não pode ainda ser automatizada).

Podemos esboçar uma listagem das capacidades humanas que, nas condições tecnológicas, económicas e sociais de hoje podem constituir barreiras à automatização das tarefas que delas dependam em larga escala:

a) Criatividade/Imaginação – Corresponde em geral ao conceito de TNR

b) Representação mental do mundo envolvente – O ser humano detém uma complexa representação mental do contexto natural e social em que se insere, a qual nenhum dispositivo automático pode emular.
(Ex: A tarefa do estafeta ou do carteiro não podem ser automatizadas pois o “mapa” de uma cidade e dos eventos inesperados que nela ocorrem não pode ser “ensinado” a um robot)

c) Acuidade dos sentidos e interpretação dos seus sinais – Os sentidos humanos, com especial destaque para a visão, não são passíveis de emulação por autómatos. Muito dependentes da “representação mental do mundo envolvente” têm uma capacidade enorme de, por exemplo, interpretar as imagens e sons o que constitui tarefa muito mais complexa do que a simples captação.
(Ex: A inspecção visual de padrões industriais complexos, ou socialmente codificados como nos casos da manutenção da ordem)

d) Destreza física - Mesmo a este nível surgem situações em que o homem vence a máquina.
(Ex: Numa fábrica de limas, de uma firma internacional, com elevado grau de automatização, anos 80. Alguns operários com uma simples bancada e um martelo aplicavam um número variável de pancadas secas em cada lima que manipulavam. Tratava-se de “desempenar” as limas acabadas de produzir. Com um simples relance mediam o defeito, calculavam a correcção necessária e despachavam o assunto com uma ou duas marteladas. Um robot para fazer o equivalente a esta tarefa teria um custo incomportável).

e) Relacionamento humano – Muitas tarefas, mesmo que fossem automatizáveis do ponto de vista tecnológico e económico, não poderiam deixar de ser executadas por humanos.
(Ex: Poucos gostariam que um penso fosse feito por uma máquina em vez de um enfermeiro).

Para determinar até que ponto uma profissão está ou não ameaçada pela automatização basta avaliar em que medida as tarefas que cumpre estão ou não dependentes das capacidades humanas acima listadas. Convém também não esquecer que a automatização pode não ser a substituição pura e simples do trabalhador; como vimos pode resultar da transformação de tarefas a montante ou a jusante na cadeia de produção
(Ex: a introdução dos cartões de crédito tornou desnecessários muitos empregados bancários que processavam os cheques e muitos caixas que entregavam as notas ao cliente)
Todas as barreiras à automatização mostram que o trabalho repetitivo vai continuar sempre a existir, embora muito transformado. Também a agricultura não desapareceu pelo facto de, com a Revolução Industrial, ter perdido a preponderância na economia.
No entanto a agricultura da era industrial é muito diferente da agricultura da fase anterior.

02.05 O significado profundo da automatização actual

Dir-se-á que as máquinas não surgiram agora e que já desde o século XIX que a automatização pode ser considerada significativa. Embora isso seja verdade defendemos que a automatização actualmente em curso está a adquirir um carácter diferente:

1. A escala da automatização é incomparavelmente maior do que no passado, podendo ser considerada como regra a seguir

2. A automatização verifica-se tanto no trabalho manual como no trabalho intelectual

3. A relação entre a quantidade e variedade das mercadorias produzidas e o volume de dinheiro ganho pelos trabalhadores e destinado ao consumo vai sendo cada vez mais desequilibrada em favor daquelas já que os dispositivos automáticos não consomem. Esta desproporção crescente entre a oferta e a procura de bens tangíveis e intangíveis é a contradição terrível da fase final do Capitalismo. Há cada vez mais mercadorias e quer o número de compradores quer o seu poder de compra não aumentam ao mesmo ritmo.

Cada país (como cada empresa) tenta transferir o problema, o excedente da oferta em relação à procura, para os outros.
Se o mercado num país se reduz então é preciso vender os produtos nos outros países. Para o próprio mercado não diminuir então os trabalhadores de um dado país podem dedicar-se às profissões não automatizáveis (engenharia, design, por ex.) e transferirem as funções automatizáveis (produção, por ex.) para outros. Se há países com mão-de-obra muito barata então até a automatização pode ser adiada a favor da “deslocalização” que entretanto converte também esses países em mercados de destino.
Ultimamente convencionou-se chamar a isto Globalização.

Todas estas manobras, e outras que não serão aqui tratadas, são paliativos que não resolvem a contradição fundamental do Capitalismo, e que apenas adiam a transformação inevitável do Capitalismo no Digitalismo.
Essa transformação estará completa quando, além dos novos meios de produção que como vimos se vêm multiplicando, surgir também um novo conjunto de relações de produção em substituição do assalariamento actualmente dominante.

Quais são os mecanismos presentes na sociedade que empurram nessa direcção ? É isso que vamos tentar explicar seguidamente.

É do conhecimento geral que nos custos dos produtos têm um peso cada vez maior os estudos de mercado, a concepção, o design, a consultoria de gestão, o marketing, etc [19].
Ou seja, na incessante busca do lucro, da rentabilidade, as empresas recorrem cada vez mais ao trabalho não repetitivo (TNR) para, através da diferenciação, roubarem os clientes às outras empresas, quer sejam do mesmo ramo quer não (quem compra uma casa pode deixar de ter dinheiro para comprar um automóvel, por exemplo).

Portanto mesmo quando os custos de produção correspondem a trabalho repetitivo estes têm um peso cada vez menor em comparação com as componentes, a montante e a jusante da produção propriamente dita, aonde impera o trabalho não repetitivo.

Todas as empresas são inexoravelmente pressionadas pela concorrência para, numa espécie de instinto de sobrevivência, comprarem ou subcontratarem trabalho não repetitivo:

Exemplos:
- Equipamentos informáticos e programas destinados à gestão, para aumentar a eficiência global, controlar a logística ou melhorar o nível do serviço e fidelizar os clientes. Com eles vêm vários tipos de trabalho não repetitivo como o desenho e programação de aplicações, a gestão de projectos, a reengenharia dos processos, etc.

- Estudos de mercado antes da concepção de um novo produto (que podem também resultar na indução de necessidades que os consumidores nem sequer imaginavam que podiam vir a ter).
Aos estudos de viabilidade e aos planos de negócio, que podem prolongar-se por muitos meses, seguem-se o design e as campanhas de marketing. A publicidade constitui um elo muito forte entre o mundo da produção e o mundo do entretenimento também ele, por definição, baseado em trabalho não repetitivo.

- Serviço ao cliente na perspectiva da fidelização o que implica grandes investimentos com a montagem de estruturas de comunicação; o denominado CRM (Customer Relationship Management) para sistematizar o conhecimento resultante da totalidade das interacções com o cliente; o “Customer Care”, autênticos exércitos de vendas que partem do pretexto do suporte pós-venda para encaminhar mais e mais produtos para os mesmos clientes.

Estes são exemplos do tipo de decisões que hoje todas as empresas tomam. Basta percorrer os jornais diários para o perceber, nem é preciso recorrer às revistas sobre gestão empresarial.

Desta invasão em larga escala do trabalho não repetitivo nasce, dentro do próprio Capitalismo, a necessidade imperiosa de substituir o assalariamento clássico por novas relações de produção. Porquê ?
O trabalho não repetitivo (TNR) tem por natureza uma duração indeterminada e imprevisível e a sua qualidade e capacidade de criar valor não dependem do tempo de duração. Ou seja, um processo criativo pode demorar, por exemplo, três meses e ter uma rentabilidade menor do que uma ideia genial surgida numa tarde.
Eis as características que distinguem radicalmente o TNR do trabalho repetitivo:.

a) Indeterminação – como vimos o TNR acaba por envolver sempre um processo intelectual de determinação do seu próprio “procedimento”. A duração da actividade cerebral não é passível de medição e mesmo que se cronometrasse o aparecimento de uma ideia tal teria um valor relativo pois, por norma, o cérebro executa vários “trabalhos” em simultâneo.

b) Imprevisibilidade – mesmo que não houvesse a indeterminação, a verificação aconteceria sempre “a posteriori”, ou seja, depois de concluído sabia-se que determinado TNR teria durado um certo tempo. Nunca antes de um TNR se realizar é possível saber quanto tempo vai demorar ou, no limite, se vai alguma vez produzir o resultado esperado.

Estas características tornam inadequado o típico contrato capitalista do assalariamento em que o empregador compra tempo de força de trabalho e portanto sabe o que vai pagar (P) mas também o que vai receber (R) e pode assim assegurar-se de que R > P.

O assalariamento quando aplicado ao TNR, como ainda hoje geralmente acontece, transforma a actividade económica num jogo de azar. Muitos dos acontecimentos recentes como o fracasso das “dotcom” e as grandes falências americanas têm muito a ver com isto.

Por isso as empresas vêm cada vez com maior intensidade a fugir de um assalariamento em que o trabalhador é contratado potencialmente para toda a vida, para disponibilizar a sua força de trabalho durante X horas por dia na execução de uma determinada função contra o pagamento de um salário, tal como os senhores feudais foram substituindo os pagamentos em géneros e serviços por rendas em dinheiro, e antes deles os “domini” tinham atribuído parcelas aos escravos assegurando-lhes a sua ligação vitalícia à terra e a possibilidade de reterem uma parte do produto do seu trabalho.
Mas agora, tal como então, tais medidas não asseguram a manutenção do staus quo anterior, ao invés constituem um germe das novas relações de produção.
É claro que o desenvolvimento dos novos meios de produção do Digitalismo motiva a procura activa de soluções para ultrapassar esta contradição. É evidente que os seus detentores tentarão fazê-lo em seu favor.
Aos progressistas e aos partidos de esquerda compete lutarem para evitar que as novas relações de produção prolonguem as situações de injustiça herdadas do assalariamento; mas não vale a pena pensar que isso se consegue tentando congelar relações de produção que obviamente estão a deixar de servir.

A teoria do valor de Marx bem como o conceito de mais-valia, com base no tempo de trabalho, deixam neste novo contexto de se aplicar e terão que ser recriados.

É disso que trataremos a seguir.

03.01 Paradoxos da teoria do valor de troca baseado no tempo de trabalho

Dissemos em capítulos anteriores que a teoria marxista do valor, o valor de troca [1] baseado no tempo de trabalho, está a deixar de ter aplicabilidade no contexto do novo modo de produção dada a emergência e disseminação do trabalho não repetitivo (TNR).

Vamos usar um caso exemplar para explicar em que consistem os paradoxos.

Enunciado

Tomemos o caso dos discos compactos hoje vendidos aos milhões em discotecas, centros comerciais, hipermercados, pela internet, etc.

Estamos habituados a classificar como produtos industriais aqueles que, como os CDs, se produzem em massa e são consumidos em massa. Vamos ver que os produtos deste tipo encerram algumas surpresas quando analisados mais profundamente.

Aceitemos a caracterização das tarefas necessárias à obtenção de um CD conforme a tabela do quadro seguinte:


Quadro 3.1 - Tarefas e respectivos pesos na produção de um CD

(clicar para abrir)

Abreviaturas:
NRF (trabalho não repetitivo fixo, independente da quantidade)
NRV (trabalho não repetitivo variável, dependente da quantidade)
RPF (trabalho repetitivo fixo, independente da quantidade)
RPV (trabalho repetitivo variável, dependente da quantidade)

Se agruparmos as actividades de acordo com o tipo temos:

NRF = (A+B+C+D+G+I+K) totalizam um peso no custo de 9,5 Euros
NRV = (J) totaliza um peso no custo de 2 Euros
RPF = (E) totaliza um peso no custo de 0,5
RPV = (F+H) totalizam um peso no custo de 1 Euro

Convém neste ponto referir que as designações “trabalho fixo” e “trabalho variável” não têm o sentido usado na teoria marxista aonde o trabalho é sempre um factor variável (ver no Glossário Capital Variável [1], por oposição ao Capital Constante [1]).

A primeira constatação é que, para um custo unitário de 13 Euros por cada disco, as actividades que implicam trabalho não repetitivo constituem a parte mais importante, 11,5 Euros, enquanto as actividades baseadas em trabalho repetitivo representam apenas 1,5 Euros.

Outra constatação muito importante é que os custos de trabalho fixos representam 10 euros num total de 13 (portanto cerca de 77 %) e os custos de trabalho variáveis ascendem a 3 euros.

Aceitemos que no caso vertente os materiais (um pequeno pedaço de plástico) têm um custo por unidade negligenciável e que o mesmo sucede com as amortizações dos equipamentos produtivos dos discos e das capas depois de divididos pelo número total de discos produzidos. Vamos portanto ignorá-los para podermos concentrar-nos no factor trabalho.

Consideremos igualmente, para efeito desta análise, que a quantidade produzida foi 10.000 unidades, tendo portanto os custos de trabalho fixo, quer repetitivo quer não, sido dividido por 10.000 para obter o seu peso em cada unidade produzida.

Estes 10.000 CDs custaram 130.000 euros pois, como já vimos, o custo unitário foi 13 euros.

Uma primeira questão que se coloca é: porquê 10.000 CDs ?

Na maior parte dos casos deste tipo existe já no mercado um intervalo estabelecido dentro do qual o preço pode variar.


A determinação da quantidade a produzir resulta de estudos de mercado traduzidos em tabelas em que cada linha representa uma hipótese diferente obtida pela conjugação das variações de uma ou mais colunas, como no exemplo a seguir apresentado:


Quadro 3.2 - Tabela para decisão das quantidades a produzir

(clicar para abrir)

Como se pode ver estudam-se várias hipóteses fazendo variar o preço dentro de um dado intervalo e testando vários níveis de investimento em marketing e escolhe-se a combinação que produz maior lucro. No exemplo acima escolher-se-ia o preço de venda 18 euros e o investimento em marketing de 20.000 euros.
Trata-se como é óbvio de uma previsão baseada nos comportamentos esperados dos consumidores. Nada garante à partida que as quantidades vendidas venham realmente a ser aquelas que se estimou.

As características gerais que descrevemos até agora, para o exemplo dos CDs, aplicam-se, em graus variáveis, a um número crescente de mercadorias na nossa sociedade.
Tal como os CDs também os DVDs, os jogos para computadores, os medicamentos, os livros, etc, têm elevadíssimos custos fixos (concepção, investigação, testes, estudos de mercado, marketing, etc) e muito baixos custos de produção física (geralmente baseada em trabalho repetitivo).

No caso dos CDs, como em muitos outros, o suporte físico não interessa, é uma espécie de embalagem, pois o que se compra é a fruição da obra musical.
Assim estamos perante uma mercadoria que, embora não pareça, é intangível.

Este tipo de análise permitirá compreender que o trabalho não repetitivo e as mercadorias intangíveis se encontram já presentes na nossa sociedade numa escala muito maior do que geralmente pensamos.

Vejamos agora, através de alguns casos, quais são os paradoxos da teoria do valor de Marx, caso não seja actualizada de forma a contemplar as novas realidades económicas.



Paradoxo 1


Baseados no enunciado imaginemos uma situação em que uma empresa discográfica

a) Produziu 10.000 CDs, com custo unitário resultante de trabalho incorporado, fixo e variável, no valor de 13 euros (para evitar objecções consideremos que o tempo de trabalho aplicado corresponde ao “tempo socialmente necessário” para produzir um CD).
b) Colocou no mercado, e vendeu, todos os discos produzidos a 18 euros por unidade

Poderemos então concluir que o valor de troca de cada disco, o trabalho envolvido na produção de cada CD, equivalia a um VTU (valor de troca unitário) composto por VTF (valor do trabalho fixo) e VTV (valor do trabalho variável):

VTU = VTF + VTV

Em que VTF = (Trabalho Fixo)/10.000

Suponhamos então, dado o sucesso comercial do CD em questão, que a empresa resolve lançar no mercado um novo lote de 10.000 discos. Também estes se vendem todos pelos mesmos 18 euros.


Os custos do trabalho fixo, por definição, não ocorrem neste segundo lote. Os únicos custos que a empresa tem que suportar neste caso são os custos correspondentes ao trabalho variável.

Assim sendo o que acontece ao valor de troca dos 20.000 discos ?
Paradoxalmente, com a produção do segundo lote o valor de troca dos discos baixaria já que o mesmo trabalho fixo em vez de ser distribuído por 10.000 passa a ser distribuído por 20.000 discos.

VTF passaria a ser :

VTF = (Trabalho Fixo)/20.000

A situação acentuar-se-ia ainda mais com um terceiro lote e assim sucessivamente.
Em conclusão o Paradoxo 1 poderia ser enunciado da seguinte forma:

Paradoxo 1: Se o tempo de trabalho gasto nas mercadorias é cada vez mais um factor fixo da produção então o valor de troca está afinal dependente da quantidade produzida e portanto da resposta do mercado. Para Marx o valor de troca estava definido à saída da fábrica independentemente das vicissitudes posteriores.

Pensamos que no tempo de Marx seria difícil tomar consciência deste paradoxo devido às características da produção na época e ao modo como os custos fixos eram imputados; para Marx, numa dada unidade de produção 2000 casacos usavam sempre o dobro do tempo de trabalho de 1000 casacos já que o trabalho era, por definição, um factor variável e o Capital Constante era imputado distribuindo o seu valor de forma proporcional de acordo com o número de “peças” para as quais fora tecnicamente concebido [20].
O trabalho fixo hoje muito comum, ao contrário do Capital Constante da teoria marxista, tanto permite a produção de mil como de um milhão de unidades e é por isso que se verifica o paradoxo.

A Teoria do Valor coincidia com a realidade no cenário em que foi desenvolvida.




Paradoxo 2


Baseados no enunciado anterior consideremos o seguinte caso:

a) São produzidos dois CDs em quantidades iguais (10.000 unidades cada) e vendidos pelo mesmo preço de 18 euros.
b) O CD-a contém a 3ª Sinfonia de Beethoven interpretada por uma orquestra composta por oitenta elementos
c) O CD-b contém um conjunto de canções da autoria de Quim Barreiros, interpretadas pelo próprio e por um conjunto ligeiro de sete elementos.
d) Todo o trabalho necessário à produção dos discos teve a mesma duração com excepção do trabalho de composição cuja duração, aliás, não foi possível determinar

Resulta que o VTU (valor de troca unitário) dos dois discos é em tudo idêntico, se baseado no tempo, com excepção do trabalho de composição.
Podemos admitir que o trabalho de Beethoven será mais valioso seguindo o critério de Marx, se tiver sido mais longo, do que o trabalho de Quim Barreiros...
Se quisermos entrar pelo absurdo até podemos dizer que o “trabalho socialmente necessário” [1] para fazer uma sinfonia do Beethoven é mais demorado do aquele que é requerido por dez canções do Quim Barreiros...
(Se admitirmos o inverso o exemplo ilustrará conclusões igualmente úteis !)

Então o CD-a tem um valor de troca unitário, VTU, superior ao do CD-b.
Proceda-se a uma experiência sociológica que consistirá no seguinte: proponha-se a cada um dos 10.000 compradores do CD-b que aceite trocá-lo pelo CD-a.

Com toda a probabilidade essa troca será recusada na esmagadora maioria dos casos ou seja quase todos os 10.000 compradores recusarão trocar uma mercadoria por outra com valor de troca superior.

Atendendo ao número de casos tratado pudemos dizer que a conclusão tem valor estatístico, representa uma observação fundamentada da realidade.

O mesmo paradoxo ocorreria no caso de os dois discos conterem a mesma 3ª Sinfonia do Beethoven mas interpretada por duas orquestras diferentes com tempos de trabalho de execução também diferentes.

Podemos concluir que o mercado não considera a quantidade/tempo de trabalho incorporados numa mercadoria como base do seu valor.
O Paradoxo 2 poderia ser assim enunciado:

Paradoxo 2 – O valor de troca das mercadorias baseado na quantidade de trabalho que incorporam não é considerado por quem toma a decisão de trocar mercadorias.

Há portanto outros factores de decisão no acto da compra que discutiremos nos próximos capítulos.