Dissemos em capítulos anteriores que a teoria marxista do valor, o valor de troca [1] baseado no tempo de trabalho, está a deixar de ter aplicabilidade no contexto do novo modo de produção dada a emergência e disseminação do trabalho não repetitivo (TNR).
Vamos usar um caso exemplar para explicar em que consistem os paradoxos.
EnunciadoTomemos o caso dos discos compactos hoje vendidos aos milhões em discotecas, centros comerciais, hipermercados, pela internet, etc.
Estamos habituados a classificar como produtos industriais aqueles que, como os CDs, se produzem em massa e são consumidos em massa. Vamos ver que os produtos deste tipo encerram algumas surpresas quando analisados mais profundamente.
Aceitemos a caracterização das tarefas necessárias à obtenção de um CD conforme a tabela do quadro seguinte:
Quadro 3.1 - Tarefas e respectivos pesos na produção de um CD (clicar para abrir)Abreviaturas:
NRF (trabalho não repetitivo fixo, independente da quantidade)
NRV (trabalho não repetitivo variável, dependente da quantidade)
RPF (trabalho repetitivo fixo, independente da quantidade)
RPV (trabalho repetitivo variável, dependente da quantidade)
Se agruparmos as actividades de acordo com o tipo temos:
NRF = (A+B+C+D+G+I+K) totalizam um peso no custo de 9,5 Euros
NRV = (J) totaliza um peso no custo de 2 Euros
RPF = (E) totaliza um peso no custo de 0,5
RPV = (F+H) totalizam um peso no custo de 1 Euro
Convém neste ponto referir que as designações “trabalho fixo” e “trabalho variável” não têm o sentido usado na teoria marxista aonde o trabalho é sempre um factor variável (ver no Glossário Capital Variável [1], por oposição ao Capital Constante [1]).
A primeira constatação é que, para um custo unitário de 13 Euros por cada disco, as actividades que implicam trabalho não repetitivo constituem a parte mais importante, 11,5 Euros, enquanto as actividades baseadas em trabalho repetitivo representam apenas 1,5 Euros.
Outra constatação muito importante é que os custos de trabalho fixos representam 10 euros num total de 13 (portanto cerca de 77 %) e os custos de trabalho variáveis ascendem a 3 euros.
Aceitemos que no caso vertente os materiais (um pequeno pedaço de plástico) têm um custo por unidade negligenciável e que o mesmo sucede com as amortizações dos equipamentos produtivos dos discos e das capas depois de divididos pelo número total de discos produzidos. Vamos portanto ignorá-los para podermos concentrar-nos no factor trabalho.
Consideremos igualmente, para efeito desta análise, que a quantidade produzida foi 10.000 unidades, tendo portanto os custos de trabalho fixo, quer repetitivo quer não, sido dividido por 10.000 para obter o seu peso em cada unidade produzida.
Estes 10.000 CDs custaram 130.000 euros pois, como já vimos, o custo unitário foi 13 euros.
Uma primeira questão que se coloca é: porquê 10.000 CDs ?
Na maior parte dos casos deste tipo existe já no mercado um intervalo estabelecido dentro do qual o preço pode variar.
A determinação da quantidade a produzir resulta de estudos de mercado traduzidos em tabelas em que cada linha representa uma hipótese diferente obtida pela conjugação das variações de uma ou mais colunas, como no exemplo a seguir apresentado:
Quadro 3.2 - Tabela para decisão das quantidades a produzir (clicar para abrir)Como se pode ver estudam-se várias hipóteses fazendo variar o preço dentro de um dado intervalo e testando vários níveis de investimento em marketing e escolhe-se a combinação que produz maior lucro. No exemplo acima escolher-se-ia o preço de venda 18 euros e o investimento em marketing de 20.000 euros.
Trata-se como é óbvio de uma previsão baseada nos comportamentos esperados dos consumidores. Nada garante à partida que as quantidades vendidas venham realmente a ser aquelas que se estimou.
As características gerais que descrevemos até agora, para o exemplo dos CDs, aplicam-se, em graus variáveis, a um número crescente de mercadorias na nossa sociedade.
Tal como os CDs também os DVDs, os jogos para computadores, os medicamentos, os livros, etc, têm elevadíssimos custos fixos (concepção, investigação, testes, estudos de mercado, marketing, etc) e muito baixos custos de produção física (geralmente baseada em trabalho repetitivo).
No caso dos CDs, como em muitos outros, o suporte físico não interessa, é uma espécie de embalagem, pois o que se compra é a fruição da obra musical.
Assim estamos perante uma mercadoria que, embora não pareça, é intangível.
Este tipo de análise permitirá compreender que o trabalho não repetitivo e as mercadorias intangíveis se encontram já presentes na nossa sociedade numa escala muito maior do que geralmente pensamos.
Vejamos agora, através de alguns casos, quais são os paradoxos da teoria do valor de Marx, caso não seja actualizada de forma a contemplar as novas realidades económicas.
Paradoxo 1Baseados no enunciado imaginemos uma situação em que uma empresa discográfica
a) Produziu 10.000 CDs, com custo unitário resultante de trabalho incorporado, fixo e variável, no valor de 13 euros (para evitar objecções consideremos que o tempo de trabalho aplicado corresponde ao “tempo socialmente necessário” para produzir um CD).
b) Colocou no mercado, e vendeu, todos os discos produzidos a 18 euros por unidade
Poderemos então concluir que o valor de troca de cada disco, o trabalho envolvido na produção de cada CD, equivalia a um VTU (valor de troca unitário) composto por VTF (valor do trabalho fixo) e VTV (valor do trabalho variável):
VTU = VTF + VTV
Em que VTF = (Trabalho Fixo)/10.000
Suponhamos então, dado o sucesso comercial do CD em questão, que a empresa resolve lançar no mercado um novo lote de 10.000 discos. Também estes se vendem todos pelos mesmos 18 euros.
Os custos do trabalho fixo, por definição, não ocorrem neste segundo lote. Os únicos custos que a empresa tem que suportar neste caso são os custos correspondentes ao trabalho variável.
Assim sendo o que acontece ao valor de troca dos 20.000 discos ?
Paradoxalmente, com a produção do segundo lote o valor de troca dos discos baixaria já que o mesmo trabalho fixo em vez de ser distribuído por 10.000 passa a ser distribuído por 20.000 discos.
VTF passaria a ser :
VTF = (Trabalho Fixo)/20.000
A situação acentuar-se-ia ainda mais com um terceiro lote e assim sucessivamente.
Em conclusão o Paradoxo 1 poderia ser enunciado da seguinte forma:
Paradoxo 1: Se o tempo de trabalho gasto nas mercadorias é cada vez mais um factor fixo da produção então o valor de troca está afinal dependente da quantidade produzida e portanto da resposta do mercado. Para Marx o valor de troca estava definido à saída da fábrica independentemente das vicissitudes posteriores.
Pensamos que no tempo de Marx seria difícil tomar consciência deste paradoxo devido às características da produção na época e ao modo como os custos fixos eram imputados; para Marx, numa dada unidade de produção 2000 casacos usavam sempre o dobro do tempo de trabalho de 1000 casacos já que o trabalho era, por definição, um factor variável e o Capital Constante era imputado distribuindo o seu valor de forma proporcional de acordo com o número de “peças” para as quais fora tecnicamente concebido [20].
O trabalho fixo hoje muito comum, ao contrário do Capital Constante da teoria marxista, tanto permite a produção de mil como de um milhão de unidades e é por isso que se verifica o paradoxo.
A Teoria do Valor coincidia com a realidade no cenário em que foi desenvolvida.
Paradoxo 2Baseados no enunciado anterior consideremos o seguinte caso:
a) São produzidos dois CDs em quantidades iguais (10.000 unidades cada) e vendidos pelo mesmo preço de 18 euros.
b) O CD-a contém a 3ª Sinfonia de Beethoven interpretada por uma orquestra composta por oitenta elementos
c) O CD-b contém um conjunto de canções da autoria de Quim Barreiros, interpretadas pelo próprio e por um conjunto ligeiro de sete elementos.
d) Todo o trabalho necessário à produção dos discos teve a mesma duração com excepção do trabalho de composição cuja duração, aliás, não foi possível determinar
Resulta que o VTU (valor de troca unitário) dos dois discos é em tudo idêntico, se baseado no tempo, com excepção do trabalho de composição.
Podemos admitir que o trabalho de Beethoven será mais valioso seguindo o critério de Marx, se tiver sido mais longo, do que o trabalho de Quim Barreiros...
Se quisermos entrar pelo absurdo até podemos dizer que o “trabalho socialmente necessário” [1] para fazer uma sinfonia do Beethoven é mais demorado do aquele que é requerido por dez canções do Quim Barreiros...
(Se admitirmos o inverso o exemplo ilustrará conclusões igualmente úteis !)
Então o CD-a tem um valor de troca unitário, VTU, superior ao do CD-b.
Proceda-se a uma experiência sociológica que consistirá no seguinte: proponha-se a cada um dos 10.000 compradores do CD-b que aceite trocá-lo pelo CD-a.
Com toda a probabilidade essa troca será recusada na esmagadora maioria dos casos ou seja quase todos os 10.000 compradores recusarão trocar uma mercadoria por outra com valor de troca superior.
Atendendo ao número de casos tratado pudemos dizer que a conclusão tem valor estatístico, representa uma observação fundamentada da realidade.
O mesmo paradoxo ocorreria no caso de os dois discos conterem a mesma 3ª Sinfonia do Beethoven mas interpretada por duas orquestras diferentes com tempos de trabalho de execução também diferentes.
Podemos concluir que o mercado não considera a quantidade/tempo de trabalho incorporados numa mercadoria como base do seu valor.
O Paradoxo 2 poderia ser assim enunciado:
Paradoxo 2 – O valor de troca das mercadorias baseado na quantidade de trabalho que incorporam não é considerado por quem toma a decisão de trocar mercadorias.
Há portanto outros factores de decisão no acto da compra que discutiremos nos próximos capítulos.